Falsas memórias e sugestão: como memórias podem ser induzidas

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Já falamos sobre o que são falsas memórias e como elas se formam no nosso dia a dia, mas você sabia que é possível induzir memórias falsas em outras pessoas? Pois bem, essa tem sido uma questão bem problemática, especialmente no que tange a área criminal e forense.

Não raramente, testemunhas de crimes ou acidentes entregam informações erradas às autoridades, não para encobrir algo, mas simplesmente porque recordam o acontecimento de maneira distorcida. Outras vezes, algumas memórias podem ter sido “implantadas” nessas pessoas, processo chamado de sugestão, para que elas corroborem com uma acusação, por exemplo.

Estudos sobre sugestão

Diversos estudos sobre sugestão mostram que as pessoas em geral são bastante suscetíveis ao desenvolvimento de memórias falsas por sugestão.

Sugestão simples

Em 1894, Kirkpatrick realizou o que seria o primeiro estudo sobre falsas memórias.

O estudo era simples e consistia em uma lista de palavras das quais os participantes deveriam lembrar depois. Foram usadas palavras comuns, como “rolo”, “dedal” e “faca”. Na hora de recordar a lista, muitos participantes recordaram, além das palavras originais, palavras relacionadas a estas, como “fio”, “agulha” e “garfo”.

Pode não parecer muita coisa, mas este estudo mostrou que sugestões podem ser posteriormente reportadas pelas pessoas como parte da experiência de fato.

Influência de perguntas sugestivas

Já em 1910, Stern fez uma outra pesquisa a respeito da influência da sugestão nas memórias através de perguntas sugestivas. Foi feita uma encenação em uma sala de aula com várias crianças participantes. Stern fez o papel de professor, enquanto um homem repentinamente entrou na sala, conversou com Stern, pegou um livro da mesa e saiu da sala. Uma semana depois, os alunos foram chamados para recordar o acontecimento.

A recordação foi feita de duas maneiras: alguns alunos usaram o método narrativo, enquanto outros eram apresentados a uma série de questões sugestivas. Dos alunos que utilizaram o método narrativo, apenas 25% recordaram o ocorrido erroneamente, enquanto 50% dos alunos que usaram o método interrogativo cometeram erros na recordação do ocorrido.

Esse estudo é especialmente importante pois mostra como o método de interrogação pode influenciar na memória da pessoa interrogada, sendo especialmente perigoso quando se lida com crimes e acidentes. Autoridades devem tomar muito cuidado com as perguntas feitas, caso contrário podem acabar sugerindo informações falsas, o que pode resultar em falsas acusações e condenação de inocentes.

Memórias de infância e pressão social

Alguns estudos de memórias falsas (como Loftus & Pickrell, 1995) utilizaram a pressão social para verificar se haveria um efeito na implantação de memórias falsas. Para isso, os pesquisadores entrevistaram familiares dos participantes e pediram para que eles narrassem algumas histórias que o participante vivenciou durante a infância.

Depois, eles criavam uma narrativa de algo que os participantes nunca vivenciaram (como estar perdido no meio de um shopping), confirmavam com os familiares que o participante nunca passou por isso, e apresentavam essa narrativa ao participante como se algum familiar tivesse descrito essa situação.

Ao longo de 2 ou 3 sessões de entrevista, os participantes eram encorajados a revisar as narrativas de seus familiares e relatar o máximo de detalhes possíveis dessas experiências para o pesquisador. Após 2 entrevistas, cerca de 25% dos participantes relatavam memórias referentes ao episódio sugerido.

Este tipo de estudo foi feito diversas vezes, com resultados variando de 0% a 56% dos participantes relatando memórias falsas por conta das sugestões. Estima-se que essa discrepância esteja relacionada a plausibilidade dos eventos sugeridos, a quantidade de “evidências” do acontecimento, entre outros.

Criação de memórias de infância falsas com manipulação de imagem

Um outro estudo interessante a respeito da criação de falsas memórias publicado no periódico científico Psychonomic Bulletin & Review em 2002 utiliza a manipulação de imagens para “implantar” falsas memórias de infância.

Neste estudo, o método aplicado é parecido com os estudos citados logo acima, porém, ao invés de narrativas, foram apresentadas fotografias de momentos da vida dos participantes, como festas de aniversário, feriados em família, entre outros. Apenas uma das fotografias havia sido manipulada e mostrava o participante, ainda criança, em um passeio de balão.

Os pesquisadores pensaram que a presença da fotografia poderia tornar mais fácil a criação de memórias falsas. Porém, eles também esperavam que, em alguns casos, a pessoa percebesse que a fotografia era uma montagem, pois lembrariam da foto original. Por fim, os resultados mostram que, após todas as sessões de entrevista, 50% dos participantes tinham memórias falsas em diferentes níveis (recordaram parcialmente ou de maneira clara) referentes à fotografia manipulada.

Memórias de crimes que nunca cometeram

Mais um estudo mostra como é “fácil” criar memórias falsas através de sugestões foi publicado na Psychological Science em 2015. Neste estudo, foi utilizada uma falsa narrativa de um familiar na qual os participantes teriam cometido um crime entre os 11 e 14 anos de idade. Além disso, foram coletadas narrativas verdadeiras, que também foram relatadas aos participantes.

Após 3 entrevistas nas quais os participantes relatavam detalhes destes ocorridos, cerca de 70% dos participantes tinham criado, em diferentes níveis, falsas memórias em que teriam cometido um crime (desde roubo à assalto a mão armada) que teria levado ao contato com policiais durante a adolescência.

Técnicas de recuperação de memórias

Um outro problema que surge em relação às memórias falsas são as técnicas de recuperação de memórias, por vezes utilizadas por terapeutas especialistas em traumas. Muitos acreditam que memórias traumáticas estão reprimidas na psique do indivíduo, causando sintomas desagradáveis, e recuperar essas memórias seria o primeiro passo para elaboração desse trauma.

Acontece que, não raramente, essas memórias reprimidas que são recuperadas têm um conteúdo falso, colocando os clientes e suas famílias em risco, tanto por possíveis danos psicológicos quanto por acusações falsas que rendem problemas judiciais.

Em relação a essas técnicas de recuperação de memórias, estudos mostram que memórias recuperadas durante as sessões de terapia utilizando técnicas como hipnose etc., têm grande probabilidade de serem falsas memórias devido à sugestão do terapeuta. Por outro lado, pessoas passando por terapia que recordaram espontaneamente o ocorrido fora das sessões de terapia têm mais chances de estarem diante de uma memória real.

Alienação parental

A alienação parental ocorre durante o processo de separação e de decisão de guarda da criança, no qual um dos pais tenta “fazer a cabeça” da criança para que ela tenha sentimentos negativos (ódio, repulsa etc.) pelo outro genitor e não queira ficar com ele. Não é raro, nesses casos, acusações de que a criança sofreu abusos por parte do outro genitor.

Crianças são especialmente suscetíveis à sugestão. Sendo assim, não é raro que essas crianças lembrem destes abusos que nunca aconteceram. Por isso, a lei permite que, caso seja constatado um caso de alienação parental, a guarda da criança fica com o genitor que foi vítima da alienação, ou seja, o genitor que foi denunciado como se tivesse cometido um crime.

Existe muita discussão a respeito desta lei, pois existem casos em que realmente ocorre o abuso e a criança acaba parando nas mãos do abusador porque as autoridades acreditam se tratar de um caso de alienação parental — especialmente nos casos em que não há evidências físicas de abuso. No entanto, vale ressaltar que é necessário investigar detalhadamente estes casos para que se possa constatar um caso de alienação parental, o que nem sempre ocorre, podendo este ser um problema em relação ao processo de avaliação e não necessariamente em relação à lei em si.

Memórias falsas devido a prejuízos

Apesar de sabermos que muitas memórias falsas podem ser produzidas por terceiros, há também casos em que as memórias falsas surgem por conta de prejuízos no funcionamento da memória, o que pode resultar de problemas cognitivos ou traumas e danos em determinadas áreas do cérebro.

Pessoas que sofrem de amnésia após um trauma encefálico, por exemplo, podem apresentar confabulação, fenômeno no qual a pessoa relata eventos que nunca aconteceram com ela. Contudo, os estudos mostram que não existe uma regra: muitos pacientes amnésicos nunca chegam a confabular, enquanto outros passam anos sem confabular e depois começam a relatar esses eventos falsos.

Infelizmente, memórias falsas surgem e são implantadas facilmente, podendo trazer consequências negativas para a vida de todos os envolvidos em tais memórias. Portanto, avaliações psicológicas feitas de maneira adequada são determinantes em casos criminais.

Se você acredita estar sofrendo por conta de algum trauma ou transtorno psicológico, não se esqueça de entrar em contato com um psicólogo ou psiquiatra de confiança.

Referências

Geraerts, E., Schooler, J. W., Merckelbach, H., Jelicic, M., J.A. Hauer, B., & Ambadar, Z. (2007). The Reality of Recovered Memories. Psychological Science, 18(7), 564–568. doi:10.1111/j.1467-9280.2007.01940.x 

Johnson, M. (1998). False memories and confabulation. Trends in Cognitive Sciences, 2(4), 137–145. doi:10.1016/s1364-6613(98)01152-8 

Oliveira, H. M., Albuquerque, P. B., & Saraiva, M. (2018). O Estudo das falsas memórias: reflexão histórica. Temas em Psicologia, 26(4), 1763-1773. https://dx.doi.org/10.9788/TP2018.4-03Pt

Shaw, J., & Porter, S. (2015). Constructing Rich False Memories of Committing Crime. Psychological Science, 26(3), 291–301. doi:10.1177/0956797614562862

Wade, K. A., Garry, M., Don Read, J., & Lindsay, D. S. (2002). A picture is worth a thousand lies: Using false photographs to create false childhood memories. Psychonomic Bulletin & Review, 9(3), 597–603. doi:10.3758/bf03196318

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