A experiência humana é infinitamente complexa e é permeada por uma variedade de vivências emocionais e expressões comportamentais. Com tanta complexidade, como seria possível pensar no que constitui um funcionamento “patológico” e quando se trata de algo “normal”?
No contexto da saúde mental, essa discussão deve ser feita tomando muito cuidado, tendo em vista que hoje em dia existe uma tendência à patologização de tudo que é visto como socialmente indesejado.
Neste artigo, iremos discutir o conceito de normalidade e quando um sofrimento se torna patológico, ou seja, quando ele necessita de uma intervenção psicológica para evitar danos à vida de um indivíduo. Confira!
O que seria normal?
O termo “normal” é bastante complexo, pois não existe algo que seja “normal” em essência. Em outras palavras, a normalidade é definida pela sociedade na qual está inserida.
Portanto, o que é normal em uma sociedade pode não ser normal para uma outra sociedade. Ou, até mesmo, o que é normal para uma sociedade em um determinado tempo pode não ser mais visto como normal por essa mesma sociedade em outras épocas.
Sendo assim, é difícil definir o que seria normal. Contudo, no contexto da saúde mental, a compreensão da psique humana nos permite entender uma série de comportamentos, emoções e expressões como “normais” ou, ao menos, não patológicas.
Ansiedade, tristeza, euforia, raiva, entre outros sentimentos frequentemente vistos como problemáticos, na realidade são completamente naturais e podem ocorrer em qualquer pessoa a qualquer momento.
No entanto, vivemos em épocas de positividade tóxica, na qual há uma baixa tolerância ao mal estar, a sentimentos e ideias tidos como negativos. Basta apresentar uma emoção socialmente indesejada que já ouvimos alguém falar “faça terapia”, como se sentir algo negativo fosse um defeito que precisa ser consertado.
Essa intolerância leva a uma crença de que se sentir triste ou ansioso é errado, é uma doença que precisa ser curada, pois o estado “normal” do ser humano seria o de felicidade e gratidão.
Contudo, os estudos feitos ao longo do tempo por psicólogos e outros estudiosos da saúde mental mostram que o ser humano “normal” vivencia todas essas emoções negativas, tem comportamentos vistos como socialmente indesejáveis vez ou outra, expressa descontentamento com algumas coisas na vida.
Portanto, a mera presença dessas questões não é o suficiente para considerar uma patologia. Então o que faz com que exista o sofrimento patológico, ou seja, os transtornos mentais?
Quando um sofrimento se torna patológico?
Podemos entender o patológico como algo que é tão prejudicial que precisa de algum tipo de intervenção clínica para que a pessoa possa recuperar sua qualidade de vida. Em outras palavras, é quando o sofrimento é tão intenso que causa prejuízos significativos na vida da pessoa.
Neste sentido, é possível usar o exemplo da ansiedade, um fenômeno natural que ocorre quando há a antecipação de algum perigo. Este fenômeno é evolutivamente vantajoso pois permitiu que nossos antepassados se preparassem para eventuais perigos com antecedência, diminuindo os prejuízos.
Quando bem regulada, a ansiedade aparece em contextos nos quais faz sentido, como ao se preparar para um teste ou uma apresentação em público. Neste sentido, a ansiedade pode ser vista como “normal”.
Contudo, há casos em que a ansiedade aparece em contextos nos quais não haveria necessidade, ou em contextos nos quais a ansiedade faz sentido, mas seus sintomas são tão intensos que acabam prejudicando o funcionamento da pessoa. Este seria um exemplo de uma ansiedade “patológica”.
Quando, por conta da ansiedade, a pessoa deixa de fazer coisas que são importantes para si, como trabalhar, estudar ou correr atrás de um sonho, estamos falando de uma ansiedade que está trazendo consequências negativas a longo prazo, prejudicando sua qualidade de vida.
Em outras palavras, a patologia não está no acontecimento em si, na ansiedade que ataca ou na tristeza que nos abate por um tempo.
A patologia está na descontextualização deste sofrimento, ou seja, quando este sofrimento surge em situações nas quais ele não faria sentido, ou quando mesmo quando há um contexto condizente com o sofrimento, este é intenso o suficiente para trazer prejuízos significativos.
Em grande parte dos transtornos descritos no Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), um dos critérios diagnósticos é quando os sintomas trazem “sofrimento clínico significativo”, ou seja, quando os sintomas são tão intensos que fazem com que a pessoa precise buscar ajuda para manejá-los. Em outras palavras, os sintomas em si não fazem a patologia, mas sim o quanto esses sintomas chegam a interferir no funcionamento da pessoa.
O que fazer quando o sofrimento não é patológico?
Embora nem todo sofrimento seja tão intenso a ponto de necessitar intervenção clínica, isso não significa que conviver com as dores da vida não seja desagradável.
Mesmo que seja importante reconhecer esses sentimentos desagradáveis como naturais e partes completamente normais de nossas vidas, não significa que devemos ficar parados de braços cruzados quando algo nos incomoda.
A saúde mental não está na ausência do sofrimento, nem na resignação a ele, mas sim na maneira que a pessoa consegue manejar estas dores. Quando a pessoa aprende a fazer uma regulação emocional de forma adaptativa, ou seja, de uma forma saudável e que não traz prejuízos, podemos falar de uma pessoa que não precisa de intervenção psicológica.
No entanto, existem muitas pessoas que não possuem essas habilidades para lidar com os sentimentos e situações ruins de forma funcional. Portanto, mesmo que essas pessoas não necessariamente tenham um sofrimento patológico, mesmo sem nenhum diagnóstico, elas ainda podem se beneficiar da psicoterapia.
A psicoterapia tem como objetivo não apenas tratar transtornos mentais, mas também realizar a manutenção da saúde mental, prevenindo quadros patológicos e evitando prejuízos na qualidade de vida de uma pessoa.
Portanto, a psicoterapia não é algo que deve ser feito apenas quando se tem um diagnóstico, mas sim uma ferramenta que auxiliar no autoconhecimento e no desenvolvimento de maneiras saudáveis e funcionais para lidar com os infortúnios da vida.
Vale ressaltar que a psicoterapia também não é um processo corretivo, ou seja, ela não está tentando consertar algo que está errado. O objetivo é sempre melhorar a qualidade de vida do indivíduo, mesmo que isso signifique ajudá-lo a expressar de forma saudável seus sentimentos negativos, indo contra a cultura dominante que impõe a felicidade e a gratidão como ideais de saúde mental e física.
Nem todo sofrimento precisa de tratamento, nem toda tristeza precisa ser medicalizada. Mas, quando precisa, é importante contar com um profissional da saúde mental de confiança.
Se você suspeita que tem sintomas de algum transtorno mental ou está sentindo que sua vida tem sido limitada pelo sofrimento, não hesite em marcar uma consulta com um psiquiatra ou psicólogo assim que possível!
Referências
Associação Americana de Psiquiatria (2014). DSM-5 – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais, 5ª. edição. Porto Alegre: Artmed.