Se você se interessa por saúde mental, provavelmente já sabe que adversidades na infância, como traumas e abusos, têm um peso enorme na hora de diagnosticar um transtorno mental. Um dos fatores de risco para grande parte dos transtornos de ansiedade, humor e até personalidade é o trauma na infância. Contudo, não há muitos que sabem até onde vai o impacto dessas adversidades no começo da vida. Será que ele afeta apenas o humor, ou há outros prejuízos?
Para começar, é importante saber o que pode ser considerado como adversidades na infância. Alguns casos podem parecer óbvios, enquanto outros são bem sutis e, consequentemente, mais difíceis de se identificar. Alguns exemplos do que são adversidades na infância são:
- Abusos físicos ou sexuais;
- Abusos psicológicos, incluindo negligência ou invalidação emocional;
- Separação dos pais;
- Crescer em ambiente onde há muita violência (brigas em casa, bairros violentos etc.);
- Crescer em uma casa com baixa renda;
- Instabilidade de moradia (precisar se mudar com frequência ou não ter onde morar);
- Familiares que sofrem com abuso de substância.
Estes são apenas alguns exemplos. Existem muitas outras situações que podem causar traumas, até porque cada indivíduo é diferente e interpreta os eventos a sua maneira. O que para uma pessoa é um trauma, para outra pode não ser. Ainda assim, algumas situações, como as listadas acima, aumentam muito o risco de problemas emocionais e prejuízos cognitivos no futuro.
Quais são os efeitos das adversidades na infância?
Dois estudos recentes mostram que os impactos destes traumas de infância são ainda maiores do que se pensava. Eles não apenas afetam o emocional, como também causam prejuízos em outras áreas. Entenda:
Baixa renda e sintomas psiquiátricos
Um estudo publicado em maio no periódico científico JAMA Psychiatry estudou os impactos de uma baixa renda na psique das crianças. Foram analisados dados de 9.498 participantes entre 8 e 21 anos de idade, levando em consideração a presença de traumas durante a infância e a renda.
O que os pesquisadores encontraram foi que existe uma relação entre baixa renda e uma elevação em sintomas psiquiátricos, como transtornos de humor, ansiedade, fobias, psicose e transtornos de comportamento, como transtorno opositivo-desafiador, transtorno de conduta e TDAH.
É importante notar que o estudo não mostrou que pessoas com baixa renda têm maiores chances de desenvolver estes transtornos. O que ele mostrou, de fato, é que em pessoas de baixa renda, os sintomas destes transtornos costumam ser mais severos.
Traumas de infância e sintomas psiquiátricos
Assim como no caso da baixa renda, o estudo mostrou que os traumas de infância também aumentam a severidade dos sintomas de transtornos psiquiátricos, em especial o transtorno de estresse pós-traumático.
Os pesquisadores perceberam que um evento traumático está associado a um aumento moderado da severidade dos sintomas psiquiátricos, enquanto dois ou mais eventos traumáticos têm efeitos ainda maiores, especialmente no que tange sintomas de transtornos de humor, ansiedade e sintomas psicóticos.
Vale ressaltar, também, que esses efeitos foram maiores em pessoas do sexo feminino do que pessoas do sexo masculino.
Funcionamento cognitivo
O funcionamento cognitivo também aparenta ser prejudicado por adversidades na infância. No entanto, a pesquisa revela que esses efeitos são mais severos em famílias de baixa renda.
A pobreza foi associada com déficits cognitivos moderados e graves, especialmente no que tange a função executiva e raciocínios complexos. Em pessoas que sofreram apenas eventos traumáticos, mas não sofreram com baixa renda, os efeitos foram bem mais brandos: o prejuízo na cognição foi baixo, e em especial o funcionamento da memória parece melhor se comparado com as pessoas de baixa renda.
Um outro estudo publicado no Development and Psychopathology, periódico científico da Universidade de Cambridge, colabora com estes dados: foram analisados dados sobre 306 crianças dos 3 aos 5 anos e meio de idade, de diferentes rendas e etnias. Cerca de 57% das crianças estavam na categoria de baixa renda ou pobreza e foi possível perceber que a renda da família é um fator chave para os prejuízos encontrados.
Anomalias no desenvolvimento e estrutura cerebral
Tanto nos casos de baixa renda como eventos traumáticos durante a infância, os pesquisadores encontraram anomalias na anatomia, fisiologia e conectividade do cérebro.
No caso das pessoas com renda baixa, essas anomalias foram encontradas mais espalhadas pelo cérebro, enquanto nas pessoas que passaram apenas por eventos traumáticos, as anomalias eram mais focadas em áreas do cérebro que processam emoções, memória, função executiva e raciocínio complexo.
Além disso, foi encontrado que ambos os grupos (pessoas de baixa renda e pessoas que sofreram eventos traumáticos) estão associados a um início precoce da puberdade. Além disso, os cérebros dessas crianças possuem características associadas ao cérebro adulto, o que pode afetar o desenvolvimento, visto que é preciso mais tempo para que o cérebro amadureça adequadamente sem afetar sua estrutura.
Alterações no hormônio de estresse
Outra alteração encontrada, especialmente nas crianças que passam por adversidades com frequência, como crianças de baixa renda, foi o nível do hormônio de estresse.
O estudo publicado pela Development and Psychopathology também analisou amostras de saliva das crianças, medindo o nível de cortisol no organismo. O cortisol é o hormônio do estresse, necessário para que possamos enfrentar os desafios e dificuldades em nossas vidas.
Em pessoas saudáveis, esse hormônio segue um padrão: seus níveis são maiores durante a manhã, para que a pessoa possa se levantar e enfrentar o dia. A medida em que o tempo passa, os níveis de cortisol vão diminuindo, pois não são mais tão necessários. Contudo, no caso das crianças que lidam com adversidades diariamente, esse padrão não se confirma.
Em adultos e crianças que passam por adversidades crônicas, o organismo parece criar uma espécie de imunidade ao estresse, então para de responder liberando cortisol. O resultado disso é que essas crianças tinham níveis baixos de cortisol pela manhã e que não costumavam variar ao longo do dia. A falta de cortisol, neste sentido, acaba sendo prejudicial, pois essas pessoas não têm níveis o suficiente do hormônio para manterem-se alertas e emocionalmente preparadas para lidar com as dificuldades do dia.
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Muitas vezes, adversidades são inevitáveis. Porém, isso não significa que não há esperança. No caso de crianças, os pais e cuidadores podem tentar, na medida do possível, mantê-la longe das fontes de estresse e traumas.
Contudo, é importante ter em mente que não se pode mimar a criança para compensar os efeitos dessas adversidades. Caso contrário, a criança não aprende a ter responsabilidade pelas suas ações, o que causa prejuízos na vida adulta também.
Se você tem um filho e está passando por dificuldades, não esqueça de contatar um psicólogo ou psiquiatra de confiança!
Referências