O transtorno de espectro autista (TEA) tem como principal característica a dificuldade de comunicação e sociabilidade, assim como comportamentos repetitivos e limitados. É um transtorno do neurodesenvolvimento que costuma ser diagnosticado já durante os primeiros anos de vida, mas casos mais leves podem demorar muitos anos até serem descobertos.
Uma pesquisa recente, publicada no periódico científico The Lancet Psychiatry, mostra que estratégias compensatórias podem piorar esse atraso no diagnóstico.
As estratégias compensatórias são comportamentos aprendidos por pessoas que sofrem de TEA que os ajudam a ter um funcionamento social parecido com o de uma pessoa que não sofre com o autismo, disfarçando o transtorno.
A maior vantagem do uso dessas estratégias está na sociabilidade, uma das principais áreas prejudicadas pelo autismo. A pessoa dentro do espectro que faz o uso dessas estratégias melhora a qualidade dos seus relacionamentos, têm maior independência e melhora as chances de conseguir e manter um emprego.
O preço que se paga, no entanto, é alto: o uso de estratégias compensatórias está associado a um diagnóstico tardio e prejuízos na saúde mental. Pessoas com TEA sofrem grandes aflições ao utilizar essas estratégias compensatórias, pois precisam forçar algo que não é delas.
É normal que, em situações sociais, as pessoas sejam forçadas a agir de maneiras que não condizem com suas realidades por educação, como quando uma pessoa está passando por problemas e responde “estou bem” quando perguntam como ela está.
São habilidades sociais que aprendemos a medida em que amadurecemos, pois nem todas as pessoas são próximas o bastante para saberem sobre nossos problemas e “desabafar” com essas pessoas pode prejudicar o relacionamento ao invés de melhorá-lo.
Pessoas com autismo, por exemplo, podem não fazer essa distinção e simplesmente falar sobre seus problemas com pessoas que não são próximas e muitas vezes não estão interessadas em saber.
Na mídia, pessoas com TEA são retratadas como aquelas que não têm freios na hora de falar verdades em situações sociais, independente das consequências. Isso pode acontecer no caso de algumas pessoas no espectro autista, mas não equivale a realidade de todas — muitas aprendem estratégias compensatórias, evitando esse tipo de situação.
Para pessoas que sofrem com o autismo, essa angústia social é constante, pois, ao contrário das pessoas fora do espectro, esses indivíduos podem não desenvolver muito bem esses comportamentos sociais, precisando forçar mais para disfarçar a falta de habilidades. Para uma pessoa dentro do espectro até mesmo cumprimentar os outros de maneira socialmente adequada pode ser difícil dependendo da severidade do transtorno.
Os prejuízos das estratégias compensatórias
Ainda que o uso de estratégias compensatórias promova melhorias na vida social e profissional da pessoa com TEA, elas não são completamente inofensivas.
Quando essas estratégias são aprendidas antes que a pessoa receba um diagnóstico de autismo, elas podem atrasar o diagnóstico e deixar a pessoa sem a assistência necessária para lidar com outros problemas que o autismo traz.
Como dito anteriormente, uma das áreas mais afetadas pelo autismo é a sociabilidade, mas não é a única. Embora a pessoa tenha um comportamento visto como neurotípico (comportamento de uma pessoa sem transtornos mentais), ela ainda pode ser afetada com as dificuldades cognitivas presentes no autismo. Isso pode gerar sofrimento significativo sem que o problema seja abordado, justamente pela falta do diagnóstico.
Caso esses problemas cognitivos sejam prejudiciais o suficiente, a pessoa pode procurar ajuda psiquiátrica e receber um diagnóstico errôneo por não apresentar comportamentos típicos do espectro autista. O risco de ser medicado incorretamente nesses casos é alto.
Quais são essas estratégias compensatórias?
Estratégias compensatórias são comportamentos gerados para evitar os resultados negativos de comportamentos do espectro autista. Como o próprio nome diz, elas tentam compensar a falta de habilidades de uma pessoa com TEA.
Essas estratégias são diferentes de simplesmente reprimir um comportamento autista, como o stimming (estereotipia), que consiste em movimentos corporais repetitivos.
Esses comportamentos, embora geralmente inofensivos, não são muito bem vistos em situações sociais e, por isso, muitas pessoas com TEA precisam aprender a reprimi-los em público. Não se trata de uma estratégia compensatória, pois não se está utilizando outro comportamento para compensar — a pessoa está apenas inibindo um comportamento.
As estratégias compensatórias são baseadas na lógica e em experiências anteriores para dar uma resposta adequada às situações sociais. Algumas dessas estratégias são imitar os comportamentos de outras pessoas, planejar comportamentos socialmente desejáveis como olhar nos olhos, perguntar sobre a outra pessoa, demonstrar interesse, entre outros.
Para pessoas neurotípicas, tudo isso pode fluir de maneira bem natural. Já para pessoas com transtorno do espectro autista, são tarefas que demandam muita energia e podem deixar o indivíduo muito cansado após interações sociais.
Levando em conta que outros estímulos sensoriais provenientes do ambiente podem prejudicar a atenção e o pensamento de uma pessoa com TEA, planejar e executar essas estratégias pode ser ainda mais difícil em determinados contextos, como lugares onde há muitas pessoas ou muitos estímulos como sons e luzes muito fortes, por exemplo.
Sobre o estudo
O estudo publicado no The Lancet Psychiatry utilizou uma amostra de 136 adultos, dos quais 58 tinha o diagnóstico de transtorno do espectro autista, 19 se identificavam com o autismo mas não tinham diagnóstico e 59 não tinha diagnóstico nem se identificavam com o transtorno, mas tinham dificuldades sociais.
Os participantes responderam questionários sobre as estratégias compensatórias usadas, incluindo o quão bem sucedidas e cansativas eram essas estratégias, além de dizer se iriam recomendá-las para outras pessoas com dificuldades sociais.
Os pesquisadores usaram esses dados para descobrir quais estratégias eram usadas, se elas eram parecidas em pessoas diagnosticadas e não diagnosticadas e como elas poderiam afetar o diagnóstico.
Dentre os motivos que fazem pessoas com TEA utilizarem estratégias compensatórias estão a vontade de ter amigos e independência. O que o estudo mostra é que, apesar do transtorno, pessoas dentro do espectro autista têm desejo pela sociabilidade e vão tentar se adaptar para ter sucesso em suas interações sociais.
Além disso, ficou evidente que utilizar essas estratégias causa um sofrimento subjetivo significativo, especialmente em situações nas quais há muitos estímulos e estressores.
Dos 58 participantes diagnosticados, apenas 11 receberam o diagnóstico antes dos 18 anos, enquanto os outros 47 receberam o diagnóstico já na idade adulta, corroborando com a ideia de que o uso de estratégias compensatórias atrasa o diagnóstico de transtorno do espectro autista.
Os pesquisadores acreditam que, tendo noção sobre as estratégias compensatórias, os profissionais da saúde mental levem isso em conta na hora de diagnosticar uma pessoa, sem riscar o autismo da lista simplesmente porque a pessoa apresenta comportamentos sociais frequentemente adequados.
***
O transtorno de espectro autista é um transtorno do neurodesenvolvimento que pode variar muito em severidade. Embora o diagnóstico possa assustar, o tratamento do TEA é possível e o indivíduo pode levar uma vida funcional.
Se você desconfia que você ou alguém que conhece sofre com traços de autismo, lembre-se de contatar um psiquiatra ou psicólogo de confiança!
Referências
Livingston, L. A.; Shah, P. & Happé, F. (2019). Compensatory strategies below the behavioural surface in autism: a qualitative study. The Lancet Psychiatry. http://dx.doi.org/10.1016/S2215-0366(19)30224-X
https://www.eurekalert.org/pub_releases/2019-07/tl-pss072219.php