O acesso a informação que tem surgido nos últimos anos tem contribuído bastante para que mais e mais pessoas tenham conhecimento acerca de saúde mental. Esse compartilhamento de informações acerca da saúde mental ajuda a desmistificar o cuidado da mente, que antigamente era visto apenas como “coisa de louco”, mas também acaba criando um cenário complexo em que muitas pessoas estão se identificando com transtornos mentais por conta própria, sem passar antes por uma avaliação profissional.
Neste texto, iremos discutir o conceito do autodiagnóstico, refletindo sobre os potenciais perigos dessa prática, bem como entendendo como fazer um bom uso das informações disponíveis na internet.
O que é autodiagnóstico?
O autodiagnóstico é o ato de identificar uma condição médica em si mesmo, geralmente com a ajuda de pesquisas na internet, dicionários médicos, livros, entre outros.
Contudo, uma pessoa também pode fazer um autodiagnóstico ao reconhecer sintomas semelhantes ao de familiares e conhecidos diagnosticados com alguma condição médica, bem como ao reconhecer sintomas que já teve anteriormente.
Em outras palavras, uma pessoa que já foi diagnosticada com um episódio depressivo que foi tratado e entrou em remissão, por exemplo, pode se autodiagnosticar com um novo episódio depressivo ao perceber os mesmos sintomas que teve da última vez.
A identificação de sintomas por si só não constituem autodiagnóstico, no entanto, esses sintomas precisam ser avaliados por um profissional para fechar o diagnóstico de um quadro.
Quando uma pessoa identifica sintomas e assume que tem um determinado transtorno por conta disso sem o auxílio de um profissional, ela pode adotar medidas perigosas que colocam em risco sua saúde, como a automedicação ou até mesmo a invalidação de diagnósticos dados por médicos e psicólogos.
Por que as pessoas fazem autodiagnóstico?
Existem vários motivos pelos quais uma pessoa pode buscar um autodiagnóstico. Dentre eles:
- Busca por respostas: Geralmente, quando uma pessoa busca um diagnóstico psiquiátrico, é porque identifica questões em si que não estão presentes para grande parte das pessoas. Neste sentido, a busca pelo autodiagnóstico é, na realidade, uma busca por respostas para as angústias vividas;
- Dificuldades de acesso à saúde mental: Nem sempre profissionais da saúde mental são de fácil acesso, seja por falta de recursos ou até mesmo por questões de autonomia (adolescentes cujos pais/cuidadores não permitem consulta com psicólogo/psiquiatra, por exemplo);
- Necessidade de pertencimento: Receber um diagnóstico pode ajudar uma pessoa a se sentir parte de um grupo de pessoas que lidam com os mesmos desafios, ajudando na sensação de pertencimento, que é uma das necessidades básicas do ser humano;
- Busca por dicas: Mesmo que a pessoa não possa fazer o tratamento adequado com acompanhamento de profissional da saúde mental, o autodiagnóstico pode abrir caminho para que a pessoa busque dicas e acomodações para melhorar os sintomas experienciados.
Riscos do autodiagnóstico
Dentre os principais riscos do autodiagnóstico estão:
Automedicação
Uma das maiores preocupações quando se trata de autodiagnóstico é a automedicação, ou seja, o ato de tomar remédios por si mesmo, sem a prescrição de um profissional de saúde que esteja acompanhando o caso.
Em geral, os remédios usados para tratar transtornos mentais são medicamentos controlados, ou seja, a pessoa não pode comprar sem receita. No entanto, há pessoas que adquirem medicações de forma irregular, tendo acesso a esses medicamentos mesmo sem ter a prescrição de um médico.
Além disso, muitas pessoas podem optar por tentar tratar sua condição de forma natural, usando vitaminas, medicamentos naturais, chás, entre outros, podendo acabar fazendo um tratamento não adequado para o quadro apresentado.
A medicação psiquiátrica pode ser bastante complexa a depender do quadro apresentado. Mesmo dentro da categoria “antidepressivo”, existem diversos tipos de medicamento com mecanismos de ação diferentes e que podem ter efeitos completamente diferentes numa pessoa, sendo necessário o acompanhamento por um profissional para identificação do medicamento que se mostra eficaz para cada paciente.
Como cada organismo responde de maneiras distintas a diferentes medicações, pode ser que o medicamento que funciona para uma pessoa não vá funcionar para outra, podendo trazer até mesmo efeitos colaterais indesejados e piorando o quadro da pessoa que se automedica.
Além disso, não raramente o tratamento é feito com mais de um tipo de medicamento, como em combos de antidepressivos, estabilizadores de humor e antipsicóticos. Cada uma dessas categorias tem diversos medicamentos que agem de formas diferentes e podem apresentar resultados distintos em diversos organismos. Por conta disso, o acompanhamento de um médico psiquiatra é fundamental para encontrar quais medicações são eficazes para cada paciente.
Abuso e dependência
Medicamentos psiquiátricos podem ter efeitos bastante diversos e seu uso deve ser feito com muita cautela. A troca de medicação ou a descontinuação deve ser feita com acompanhamento por conta do surgimento de efeitos colaterais e sintomas de abstinência, que podem ser debilitantes.
Além disso, alguns medicamentos psiquiátricos são conhecidos pelo potencial de gerar tolerância e dependência. Nestes casos, usar a medicação como prescrita pelo médico é imprescindível para conseguir os efeitos terapêuticos sem colocar a saúde em risco.
Pessoas que se autodiagnosticam e fazem uso de medicamentos por conta própria têm maiores chances de desenvolver uma relação de abuso e dependência com a medicação.
Diagnóstico errado ou incompleto
Quando se fala de transtornos mentais, o diagnóstico não é tão simples como em enfermidades físicas, podendo levar uma pessoa a fazer um autodiagnóstico errado ou até mesmo incompleto.
Enquanto doenças do corpo podem ser identificadas por exames laboratoriais e de imagem, os transtornos mentais são identificados pelo reconhecimento de sintomas que se apresentam de forma significativa por um determinado período de tempo e resultam em sofrimento significativo. Em outras palavras, não existem exames que possam diagnosticar transtornos mentais.
Diversos sintomas de transtornos mentais não são muito específicos. Da mesma forma que a tosse pode ser sintoma de uma grande variedade de enfermidades, um humor deprimido nem sempre é sinal exclusivo de um transtorno depressivo, por exemplo.
A impulsividade, por exemplo, é uma característica bastante marcante do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). No entanto, está presente também no transtorno bipolar e no transtorno de personalidade borderline, que são condições muito distintas e são tratadas de formas completamente diferentes.
Ao ver uma lista de sintomas em algum site, uma pessoa pode acabar identificando alguns sintomas com os quais convive no seu dia-a-dia. No entanto, isso não é o suficiente para fechar um diagnóstico, considerando que diversos transtornos apresentam os mesmos sintomas.
Neste sentido, o diagnóstico feito por um profissional leva em consideração não apenas os sintomas apresentados, como também sua intensidade, duração, impacto no funcionamento do indivíduo, bem como fatores psicossociais, histórico familiar, história de vida do paciente, entre outros, buscando compreender que outros fatores podem estar por trás dos sintomas para além de um transtorno mental de fato.
Para resolver o problema dos diagnósticos errôneos, o conceito de diagnóstico diferencial se faz importante. Diversos transtornos compartilham sintomas parecidos, portanto, apenas um profissional da saúde mental capacitado pode fazer a diferenciação entre um transtorno e outro.
Uma pessoa que se autodiagnostica com depressão, por exemplo, pode na realidade sofrer de transtorno bipolar, mas não ser capaz de identificar outros sintomas que compõem o quadro, como a mania e a hipomania, enquanto um profissional da saúde mental conseguiria.
Comorbidades
Não raramente, uma pessoa diagnosticada com um transtorno mental corre o risco de desenvolver outros transtornos ao longo da vida. Pessoas que são diagnosticadas com ansiedade frequentemente desenvolvem também um transtorno depressivo, por exemplo.
A isso é dado o nome de comorbidade, ou seja, quando a pessoa possui mais de um transtorno e eles interagem entre si, exacerbando sintomas uns dos outros.
Dificilmente o autodiagnóstico leva em consideração a possibilidade de comorbidades, pois uma pessoa sem o preparo necessário tende a prestar atenção apenas nos sintomas do transtorno que acha que tem, deixando passar outros sintomas que também são relevantes para um diagnóstico preciso.
Fontes não confiáveis
Nem tudo que está na internet é verdade. Embora seja bom que qualquer pessoa possa criar conteúdo e postar na internet, é fato que existem pessoas mal intencionadas ou até mesmo sem o conhecimento necessário espalhando informações falsas.
Por conta disso, é comum nos depararmos com postagens em redes sociais repletas de informações errôneas ou ambíguas, que podem induzir uma pessoa a acreditar que sofre de um determinado transtorno mental, quando na realidade a pessoa não teve contato com fontes confiáveis sobre o assunto.
Vale ressaltar que, hoje em dia, há diversos influencers digitais que falam abertamente sobre seus sintomas e transtornos. Embora isso possa ajudar muitas pessoas a identificarem que precisam de ajuda, é importante lembrar que essas pessoas estão falando de suas vivências subjetivas e o simples fato de haver uma identificação não pode ser considerado evidência de um determinado transtorno.
Quadros de saúde preexistentes
Por fim, existem algumas condições médicas que podem causar sintomas tidos como psiquiátricos, ainda que não sejam transtornos mentais em si.
É o caso da hipotireoide, por exemplo, que causa sintomas parecidos com um quadro depressivo, ou a hipertireoide, que pode causar sintomas parecidos com quadros ansiosos. A flutuação hormonal em mulheres também pode causar sintomas que se assemelha a quadros psiquiátricos.
São diversas as condições que podem causar sintomas semelhantes aos de transtornos mentais. Por conta disso, é importante que, ao fazer a avaliação para diagnóstico de algum transtorno, sejam feitos também exames para verificar se os sintomas não são explicados por um quadro de saúde preexistente, cujo tratamento seria diferente do tratamento psiquiátrico.
Impactos do autodiagnóstico no tratamento
O autodiagnóstico pode causar diversos impactos no tratamento não apenas por conta da automedicação.
Uma pessoa pode se recusar a receber um diagnóstico diferente do que acredita ter. Nestes casos, ela pode relatar apenas os sintomas que condizem com o tal transtorno, deixando de lado outros sintomas importantes que também impactam sua vida.
Se uma pessoa que sofre de transtorno bipolar insiste que sofre apenas de depressão, pode acabar recusando o tratamento com estabilizadores de humor, que são cruciais para o tratamento deste transtorno. Na depressão, o tratamento medicamentoso pode ser feito apenas com medicação antidepressiva, enquanto no transtorno bipolar usar apenas essa medicação pode ser perigoso pela possibilidade de gerar um episódio de hipomania ou mania no paciente. Por isso, no caso do transtorno bipolar, o tratamento não é feito apenas com antidepressivos, mas também com estabilizadores de humor e, a depender do caso, antipsicóticos.
Mesmo que diversos médicos e psicólogos apontem que seu diagnóstico é diferente do que acredita, a pessoa pode entrar em negação e acreditar que os profissionais não são confiáveis e estão apenas tentando invalidá-la. Desta forma, não desenvolve uma relação saudável com os profissionais, buscando sempre um profissional que se disponha a diagnosticá-la com o que acredita, fazendo com que o tratamento nunca saia do lugar.
Além disso, quando o tratamento envolve psicoterapia, a pessoa pode ficar tão focada nos sintomas do possível diagnóstico que acaba por não falar sobre outras questões que podem estar por trás desses sintomas, como vivências traumáticas, hábitos adquiridos, entre outros.
Recomendações
Embora o autodiagnóstico possa trazer grandes problemas, o consumo de conteúdos relacionados a saúde mental pode ter benefícios, quando realizado com discernimento.
Portanto, ao identificar sintomas por meio de relatos de outras pessoas ou ao ver materiais informativos, é importante anotar esses sintomas, avaliar de que forma impactam sua vida e relatá-los para um profissional da saúde mental, que pode ajudar a identificar se esses sintomas são indicativos de transtornos de fato ou não.
Vale ressaltar que apresentar sintomas de um determinado transtorno não necessariamente significa que a pessoa sofre daquele transtorno. Existem os casos subclínicos em que, mesmo que a pessoa apresente sintomas, eles não são intensos e frequentes o suficiente para fechar o diagnóstico e, no entanto, ainda podem causar prejuízo. Nestes casos, mais importante do que o diagnóstico é saber administrar estes sintomas, o que é feito por meio do acompanhamento psicoterápico, bem como acompanhamento de médico psiquiatra.
Por fim, no caso de adolescentes que identificam sintomas de algum transtorno mas não possuem apoio dos pais e cuidadores para buscar tratamento, é interessante buscar profissionais de saúde mental no ambiente escolar, que podem conversar com os responsáveis pelo aluno e ajudar a encaminhar para uma avaliação com profissional da área clínica.
Ainda que a internet tenha facilitado a comunicação e a identificação de questões de saúde mental, é necessário ter cautela para não fazer um autodiagnóstico errôneo que atrapalha a verdadeira identificação do problema e seu tratamento.
Se você se identifica com sintomas de algum transtorno mental, não hesite em procurar um profissional da saúde mental e mantenha a mente aberta para a possibilidade de outros diagnósticos.
Referências
https://forbes.com.br/forbessaude/2023/09/arthur-guerra-as-redes-sociais-estao-estimulando-o-autodiagnostico-de-transtornos-mentais/
https://www.estadao.com.br/emais/carolina-delboni/adolescentes-usam-redes-sociais-para-autodiagnostico-de-transtornos-mentais/
https://www.unicef.org/brazil/blog/influencia-das-redes-sociais-na-banalizacao-de-psicopatologias
https://www.cnnbrasil.com.br/saude/adolescentes-usam-redes-sociais-para-se-diagnosticarem-com-tdah-autismo-e-outros-disturbios/