Você já ouviu falar que é difícil fechar um diagnóstico de um transtorno mental? Pois bem, isso é mais ou menos verdade — em muitos casos, podem ser necessárias várias consultas com o psiquiatra para conseguir um diagnóstico de certeza.
O diagnóstico de transtornos mentais não é simples como o diagnóstico de algumas enfermidades do corpo. Em geral, quando estamos fisicamente doentes, os médicos conseguem identificar as possibilidades de diagnóstico pelos sintomas relatados, fazer o exame físico e depois, se necessário, prescrevem alguns exames para confirmar ou afastar o diagnóstico.
No consultório psiquiátrico, não é muito diferente: o psiquiatra consegue pensar em hipóteses diagnósticas por meio dos sintomas relatados, mas infelizmente ainda não existem exames que possam confirmar o diagnóstico. Portanto, o diagnóstico é feito com base nos relatos e na resposta ao tratamento, o que pode demorar alguns meses e, em alguns casos, até mesmo anos.
Em uma primeira consulta com um psiquiatra, ele investiga a queixa atual, histórico de vida, doenças na família (além de outros componentes) e propõe um plano de tratamento de acordo com as hipóteses diagnósticas. Isso quer dizer, por exemplo, que se uma pessoa apresenta na queixa sintomas depressivos, o tratamento prescrito é um tratamento para depressão — contudo, existem diversos transtornos que têm sintomas parecidos com os sintomas da depressão, no entanto, isso só fica mais claro para o psiquiatra conforme a pessoa responde ao tratamento.
Se o indivíduo segue o tratamento para depressão e apresenta uma virada maníaca, por exemplo, então a hipótese inicial de depressão unipolar é descartada e o diagnóstico é de transtorno afetivo bipolar.
Isso é apenas um exemplo de como o diagnóstico pode mudar ao longo do tratamento e acompanhamento psiquiátrico, pois existem vários outros. Os transtornos de humor podem não demorar tanto para serem identificados, mas transtornos de personalidade, por exemplo, podem levar muito tempo, pois antes é preciso descartar a possibilidade de serem outros transtornos com sintomas parecidos.
Para exemplificar, os sintomas do transtorno afetivo bipolar (um transtorno de humor) podem se manifestar de maneira muito parecida com os sintomas do transtorno de personalidade borderline. Isso quer dizer que, provavelmente, antes do indivíduo ser diagnosticado com o transtorno de personalidade, ele terá um diagnóstico temporário de transtorno de humor, até que o psiquiatra perceba que a evolução do quadro do paciente durante o tratamento é mais condizente com o transtorno de personalidade do que com o transtorno de humor.
Por que não existem exames para diagnosticar transtornos mentais?
Infelizmente, não é possível identificar transtornos mentais a partir de marcadores biológicos ainda. Isso quer dizer que não é possível identificar os transtornos mentais por exames laboratoriais ou de imagem.
Como dito anteriormente, em uma doença física, o médico pode pedir exames para auxiliar no diagnóstico. Isso porque doenças físicas frequentemente possuem marcadores biológicos, ou seja, é possível ver a doença se manifestando em exames de sangue, de urina, ou exames de imagem como raios-X e tomografias.
Este não é o caso dos transtornos mentais. Não porque transtornos mentais não têm marcadores biológicos, mas porque não se tem muito acesso aos marcadores biológicos conhecidos. Isso quer dizer que a comunidade científica já identificou alguns marcadores biológicos, mas a presença deles não são o suficiente para fechar um diagnóstico, bem como o acesso a esses marcadores é bastante difícil.
Por exemplo, alguns genes foram identificados como contribuintes para o desenvolvimento de uma depressão, mas possuir tais genes não é garantia de que o transtorno se manifestará, pois isso depende da interação dos genes com outros genes e com o ambiente em que a pessoa vive. Além disso, para conseguir ter acesso a esses genes em um exame, é necessário exames de DNA muito específicos, que não são muito acessíveis ou práticos no dia-a-dia da prática clínica.
Um outro exemplo de exame que pode identificar certos marcadores biológicos de transtornos mentais é o ganho de contraste retiniano, um exame que identifica a quantidade de dopamina através do olho. Por meio de um eletrorretinograma, pesquisadores perceberam que pacientes depressivos não medicados apresentavam um ganho menor de contraste na retina quando comparado a pacientes depressivos medicados.
A dopamina é um neurotransmissor relacionado ao prazer, e alterações na sua disponibilidade estão relacionadas a diversos transtornos mentais, desde depressão até transtornos psicóticos.
Contudo, novamente, apenas detectar alterações na dopamina não é o suficiente para fechar qualquer diagnóstico, tendo em vista que ela está relacionada a uma grande variedade de transtornos mentais.
Nenhum dos exames e marcadores biológicos conhecidos até agora são definitivos para fechar diagnósticos ou indicar um tratamento específico.
Existe, no entanto, um caso isolado, no qual um antidepressivo foi desenvolvido especificamente para um certo marcador biológico. É o caso da brexanolona, um antidepressivo indicado para depressão pós-parto, que é quimicamente idêntico a um hormônio da gravidez cujo nível no organismo cai após o parto.
Contudo, este é um medicamento muito específico, usado apenas nos casos de depressão pós-parto, e ainda não há evidências de que tecnologias parecidas poderiam ser usadas em outros casos de depressão em um futuro próximo.
O que o psiquiatra investiga para diagnosticar um paciente?
Em geral, os psiquiatras seguem um padrão para compreender o quadro do paciente e poder fechar um diagnóstico. Dentre as informações que o psiquiatra investiga estão:
Identificação do paciente
São dados a respeito da identidade do paciente, como gênero, idade, situação socioeconômica, entre outros. Estes dados podem auxiliar no diagnóstico pois estudos epidemiológicos mostram que certos transtornos são mais frequentes em determinadas faixas etárias, ou em determinado gênero ou classe social.
Queixa principal
A queixa principal é o motivo pelo qual a pessoa procura o tratamento psiquiátrico. Aqui, a pessoa pode relatar o que anda sentindo, o que fez com que ela pensasse que precisa de ajuda profissional, entre outros. Normalmente, pode ser expressa em uma frase ou palavra – é o sintoma, diagnóstico que mais o aflige.
História mórbida atual
A história mórbida atual é a descrição dos sintomas atuais. Ou seja, a pessoa irá falar quais são os sintomas que vem apresentando e com qual intensidade, quando começou, como eles afetam o seu dia-a-dia, entre outros.
Caso o próprio paciente tenha suspeitas de algum transtorno em específico, é válido comentar com o psiquiatra e citar os sintomas com os quais se identifica.
História mórbida pregressa
Aqui, investiga-se as doenças passadas e a evolução do quadro. Se o paciente já esteve em tratamento psiquiátrico antes, discute-se o diagnóstico dado anteriormente e a evolução do quadro com o tratamento indicado.
Enfermidades físicas também podem ser investigadas, pois algumas podem gerar sintomas parecidos com os sintomas de transtornos mentais. Algumas enfermidades também podem contribuir para o surgimento de transtornos, como no caso de doenças crônicas ou terminais.
História mórbida familiar
Verificar se existem casos de transtornos mentais na família é extremamente importante, pois sabe-se que diversos transtornos possuem características genéticas que podem ser herdadas. Ou seja, casos de transtornos na família sempre aumentam as chances de uma pessoa receber um diagnóstico, e também ajuda a identificar o diagnóstico mais adequado para o caso.
História do desenvolvimento da pessoa
Outro fator a ser investigado é o desenvolvimento da pessoa, desde a infância até os dias atuais. Às vezes, certos acontecimentos da infância podem gerar traumas e feridas emocionais que podem durar até a vida adulta, auxiliando no desenvolvimento de um quadro psiquiátrico.
Diversos transtornos têm como fator de risco para seu desenvolvimento um histórico de traumas e abusos durante a infância, por exemplo, o que pode ajudar o psiquiatra a identificar o transtorno em questão.
Fala-se também sobre a interação com indivíduos significativos na vida da pessoa, como familiares, colegas, amigos, parceiros românticos, professores, entre outros. Os transtornos mentais também afetam as interações interpessoais, e é possível identificar melhor um transtorno de acordo com a maneira que se manifesta nessas interações.
Condições e hábitos de vida
Por fim, são investigados os hábitos de vida do indivíduo. Alguns hábitos podem ajudar na identificação do transtorno, como por exemplo hábitos de sono, que são bem marcantes em transtornos de humor como a depressão e o transtorno bipolar.
No caso do transtorno bipolar, por exemplo, a pessoa passa por episódios de mania e depressão, que alteram completamente os hábitos de sono. Compreender melhor como é a rotina de sono do paciente pode ajudar o psiquiatra a identificar se este pode ser o caso.
Hábitos alimentares e exercícios físicos também podem ajudar o profissional a compreender um pouco mais sobre o estado mental do paciente. Os exercícios físicos, por exemplo, podem combater a ansiedade e, dependendo do caso do paciente, ele não necessariamente tem um transtorno de ansiedade, apenas tem um pouco mais de ansiedade que o normal que pode ser resolvida com o desenvolvimento de hábitos como uma alimentação saudável e uma rotina de exercícios físicos.
Por fim, também é necessário investigar o uso de substâncias, tanto lícitas quanto ilícitas. Alguns medicamentos podem trazer alterações de humor, bem como o uso de álcool, café e outras drogas. É necessário investigar também a possibilidade de uma dependência química, que também pode ser tratada pelo psiquiatra.
Se você acredita ter algum transtorno mental, mas tem medo de ir em um psiquiatra pelos relatos de outras pessoas, espero que este artigo desmistifique um pouco sobre como é feito o diagnóstico psiquiátrico atualmente, o que esperar da consulta e do processo de acompanhamento.
Não esqueça de entrar em contato com um profissional da saúde mental se necessário!
Referências
Bubl, E., Kern, E., Ebert, D., Bach, M., & Tebartz van Elst, L. (2010). Seeing Gray When Feeling Blue? Depression Can Be Measured in the Eye of the Diseased. Biological Psychiatry, 68(2), 205–208. doi:10.1016/j.biopsych.2010.02.009
Leader, L. D., O’Connell, M., & VandenBerg, A. (2019). Brexanolone for Postpartum Depression: Clinical Evidence and Practical Considerations. Pharmacotherapy: The Journal of Human Pharmacology and Drug Therapy. doi:10.1002/phar.2331
https://www.medscape.com/viewarticle/910643