A eletroconvulsoterapia (ECT) é uma técnica de neuromodulação muito conhecida pelo seu mau uso no passado. No entanto, hoje em dia, sabe-se que, tomando os cuidados necessários, é uma técnica segura e eficaz.
Apesar da segurança ser atestada em estudos recentes, não significa que é uma técnica isenta de efeitos colaterais. Dentre estes efeitos colaterais estão alguns déficits cognitivos que podem surgir durante o tratamento.
Neste artigo, você irá entender que déficits cognitivos são esses e de que forma eles podem ser prevenidos.
O que são déficits cognitivos?
Para entender os déficits cognitivos, primeiro é preciso compreender o que é a cognição.
A cognição pode ser descrita como um conjunto de processos responsáveis pela aquisição, armazenamento, manipulação e recuperação de informações. Em outras palavras, é a ação mental de adquirir conhecimento e compreensão das coisas, bem como a tomada de decisão e resolução de problemas.
Dentre os processos que compõem a atividade cognitiva estão a percepção, memória, atenção, memória de trabalho, juízo, pensamento e linguagem. Em outras palavras, a cognição é responsável pelos nossos pensamentos e ações, em especial aqueles que são mais complexos e necessitam de um planejamento.
A cognição depende completamente do funcionamento dos circuitos cerebrais e dos neurotransmissores que por ali trafegam. Por isso, alterando o equilíbrio dos neurotransmissores, é provável que existam alterações cognitivas também — o que é bem comum nos transtornos mentais, por exemplo.
Essas alterações nem sempre são necessariamente ruins. Contudo, quando elas prejudicam o funcionamento da cognição, estamos falando dos déficits cognitivos. Estes déficits resultam em dificuldades de aprendizagem, pensamentos distorcidos, dificuldade na consolidação de memórias, dificuldade em manter o foco e a motivação, entre outros.
Os déficits cognitivos na eletroconvulsoterapia
Os efeitos colaterais cognitivos da ECT são estudados extensivamente e sua persistência é alvo de grande debate. Esses efeitos podem ser agudos (intensos e de curta duração) ou persistir por longos períodos de tempo.
Vale ressaltar que os próprios transtornos mentais geralmente trazem consigo prejuízos cognitivos e, portanto, nem todos os déficits cognitivos apresentados após o tratamento com eletroconvulsoterapia são efeitos colaterais desta.
Dentre os fatores que também causam déficits cognitivos além da própria ECT estão:
- A natureza e a severidade do transtorno sendo tratado;
- A natureza e a dosagem das medicações usadas para o tratamento do transtorno, pois muitas também trazem consigo efeitos colaterais cognitivos;
- A natureza e dosagem da medicação administrada antes da eletroconvulsoterapia, como anestésicos e medicamentos anticolinérgicos;
- A severidade do transtorno residual após o tratamento com ECT.
Quais os déficits cognitivos mais comuns após a ECT?
Em geral, a maior parte dos déficits cognitivos que surgem com a eletroconvulsoterapia estão relacionados à memória. São eles:
Amnésia anterógrada
A amnésia anterógrada se refere à capacidade de formar novas memórias. Em outras palavras, o paciente pode apresentar dificuldade em consolidar memórias novas logo após o tratamento com eletroconvulsoterapia.
Nestes casos, a pessoa pode apresentar dificuldade para reter as memórias a médio ou longo prazo, mas também pode haver dificuldades para lembrar-se de coisas que acabaram de acontecer (curto prazo).
Em geral, essa amnésia anterógrada ocorre enquanto a pessoa está fazendo o tratamento com ECT, sendo que grande parte das pessoas se recuperam deste problema quando encerram o tratamento.
Perda de memória subjetiva
Há pessoas que relatam perda de memória subjetiva meses ou até mesmo anos após o tratamento com ECT. No entanto, testes realizados nessas pessoas não conseguem identificar prejuízo neuropsicológico objetivo. Em outras palavras, a pessoa tem a sensação de perda de memória, mas testes mostram que não necessariamente houve prejuízo real na memória da pessoa.
Há também pesquisas que sugerem que essa perda de memória subjetiva seria mais um efeito de um transtorno somatoforme, ou seja, um transtorno no qual sintomas físicos se manifestam sem que haja uma base biológica para o seu aparecimento.
Outros tipos de déficits cognitivos
Embora os déficits cognitivos que aparecem após a ECT sejam, em sua maioria, relacionados à memória, ainda há alguns que aparecem brevemente que estão relacionadas a outras atividades cognitivas. Dentre eles estão alguns prejuízos na função executiva, pequenos déficits na velocidade de processamento e na resolução de problemas de orientação espacial.
Em geral, a atenção e a memória de trabalho não sofrem alterações e continuam com o mesmo funcionamento de antes da ECT. Também não há evidências de prejuízos intelectuais após ECT.
Todos esses déficits são moderados e tendem a se resolver dentro de 15 dias após o tratamento.
Déficits cognitivos versus efeitos colaterais neurológicos
Logo após a administração da eletroconvulsoterapia, podem surgir alguns efeitos colaterais neurológicos transientes, ou seja, que se resolvem de forma espontânea em poucas horas.
Dentre eles estão a afasia (prejuízo na fala), hemiparesia (paralisia parcial em um lado do corpo) e perda de visão.
É importante ressaltar que estes são efeitos colaterais neurológicos e que não necessariamente implicam em prejuízos cognitivos.
Esses déficits cognitivos podem ser prevenidos?
Embora não exista um método completamente efetivo para prevenir efeitos colaterais dos tratamentos, existem algumas práticas que podem diminuir as chances desses efeitos se manifestarem.
Os prejuízos na memória são mais comuns em casos de aplicação bilateral da eletroconvulsoterapia. Em outras palavras, usar aplicação unilateral tende a diminuir as chances da pessoa desenvolver algum desses problemas.
Caso seja constatado, durante o tratamento, que a pessoa está apresentando problemas na memória, é interessante reavaliar e modificar a técnica para evitar esses prejuízos. Dentre as possibilidades de mudança estão:
- Usar eletrodos em apenas um lado da cabeça (ECT unilateral);
- Diminuir a intensidade da corrente elétrica;
- Aumentar o intervalo entre as sessões de ECT;
- Alterar as dosagens das medicações;
- Usar correntes de pulsos breves.
Embora a eletroconvulsoterapia tenha um passado polêmico e possa causar efeitos colaterais bastante desagradáveis, ainda se trata de uma técnica segura e eficaz quando feita seguindo a regulamentação da Anvisa.
Vale ressaltar que a ECT é um tratamento de último recurso e, por isso, não é um tratamento que será indicado para todo mundo. Se você acredita estar sofrendo com algum transtorno psiquiátrico, não hesite em procurar um profissional da saúde mental para discutir as possibilidades de tratamento e melhorar sua qualidade de vida!
Referências
https://piaui.folha.uol.com.br/materia/eletrochoque/
https://pebmed.com.br/eletroconvulsoterapia-ect-da-historia-aos-procedimentos-envolvidos/
https://drauziovarella.uol.com.br/entrevistas-2/eletroconvulsoterapia-entrevista/
https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30654401/
https://omh.ny.gov/omhweb/ect/guidelines.htm
https://en.wikipedia.org/wiki/Electroconvulsive_therapy
https://www.researchgate.net/publication/26747701_Electroconvulsive_therapy_Myths_and_evidences
https://www.dovepress.com/cognitive-functioning-in-patients-treated-with-electroconvulsive-thera-peer-reviewed-fulltext-article-NDT
https://www.cambridgecognition.com/blog/entry/what-is-cognition