Dependência de telas: como surgiu um novo vício na contemporaneidade

O uso de telas pode gerar um vício comportamental que traz consequências negativas. Entenda melhor aqui!
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Hoje em dia, as telas estão em todos os lugares. Foi-se o tempo em que uma família precisava se reunir na sala de estar em torno de uma televisão apenas para assistir algum programa favorito, ou compartilhavam um computador apenas para toda a família e precisavam revezar para realizar suas tarefas.

Com o advento de smartphones e computadores portáteis, é comum que cada pessoa de uma casa tenha ao menos uma tela ao seu dispor a todo momento. Em famílias mais abastadas, há também a possibilidade de uma mesma pessoa ter diversos gadgets com telas, podendo fazer o uso simultâneo de vários deles.

Além disso, a possibilidade de conexão ininterrupta com a internet faz com que as pessoas estejam a todo momento com o mundo ao seu dispor, podendo usá-la para manter contato com outras pessoas, navegar em redes sociais, assistir vídeos, séries e filmes e jogar videogames a todo instante, além de, claro, ser bombardeado de notificações sempre que possível.

Embora exista uma grande parcela da população que consegue dosar o uso de telas no dia-a-dia, tem-se tornado cada vez mais frequente pessoas com queixa de passar muito tempo olhando para telas no seu cotidiano. Seja no trabalho ou nos momentos de lazer, as pessoas parecem estar usando cada vez mais o mundo digital para realizar todas as suas tarefas, eventualmente negligenciando outras partes da vida.

O vício em telas é mais comum em adolescentes e jovens adultos do que em pessoas de meia idade e idosos, mas pode acometer todas as idades. Com o avanço da tecnologia, é possível que cada vez mais grupos estejam desenvolvendo essa relação de dependência com a tecnologia.

Muitas pessoas acham que isso é um problema só delas, sem entender de que forma todos esses aparelhos são projetados para prender sua atenção. Neste texto, iremos abordar os mecanismos por trás do vício em telas, ou seja, o que faz com que uma pessoa tenha dificuldade em largar o celular ou sair da frente do computador, bem como discutiremos maneiras de trabalhar para combater esse vício.

Como se forma um vício?

Um vício, ou uma dependência, se forma a partir da busca do prazer. Embora isso possa parecer algo imaturo para algumas pessoas, existe uma base biológica para todo esse processo. Essencialmente, vícios ocorrem porque eles sequestram o mecanismo de recompensa do cérebro, fazendo com que uma pessoa tenha uma recompensa maior (prazer) com menos esforço.

Tudo isso começa a partir de um neurotransmissor chamado dopamina, que é responsável pela sensação de prazer, mas também pela motivação. Quando uma pessoa recebe uma recompensa por uma tarefa, a dopamina faz com que a pessoa sinta prazer e associe essa tarefa a essa sensação, fazendo com que a pessoa tenha mais chances de repetir essa mesma tarefa no futuro.

Contudo, a quantidade de dopamina vai depender da qualidade da recompensa. A falta de uma recompensa diminui a quantidade de dopamina liberada, fazendo com que a pessoa se sinta desmotivada a repetir o comportamento. Além disso, se o esforço empregado na tarefa for muito maior do que a recompensa recebida, o resultado também é uma diminuição da dopamina, desmotivando a pessoa.

Já quando a recompensa é bastante prazerosa, a pessoa tende a repetir o comportamento mais vezes. É assim que drogas acabam viciando: a pessoa tem só o esforço de usar a droga, enquanto a recompensa são os efeitos da substância no organismo, trazendo sensação de prazer com pouco esforço.

O mesmo ocorre em relação às telas: proporcionando entretenimento com poucos cliques ou toques na tela, o esforço para sentir prazer é demasiadamente pequeno, fazendo com que a pessoa interaja cada vez mais com as telas e, ao ficar distante delas, acabe tendo sintomas de abstinência, evidenciando então uma dependência.

Os vícios não são um fenômeno novo e não é raro que mesmo pessoas que não se considerem viciadas em nada acabem tendo um vício que não percebem. São “microprazeres” do dia-a-dia que passam despercebidos por serem vistos como normais, como o consumo de alimentos altos em açúcares e gorduras, assistir vídeos curtos de coisas que gostam, entre outros.

Contudo, é importante ressaltar que se enquadra como vício quando a pessoa faz um uso compulsivo independente de seus impactos na sua vida, na saúde, na sociabilidade, nas atividades diárias, nos estudos e trabalho, entre outros. A pessoa passa a negligenciar essas outras esferas da vida para se empenhar em seu vício, mesmo que isso tenha um custo elevado.

Muitas pessoas acreditam estar viciadas em telas por passarem um tempo considerável de seus dias olhando para telas. No entanto, quando isso não traz prejuízos ao seu funcionamento normal e a pessoa não sofre sintomas de abstinência ao ficar longe de telas, pode se tratar só de um caso de procurar outras prioridades e não necessariamente um vício.

Redes sociais, jogos e serviços de streaming contribuem para o problema

Embora as pessoas se considerem inteiramente culpadas pela sua dependência em tela, não podemos ignorar o fato de que grande parte dos produtos oferecidos nos aparelhos de mídias digitais são projetados tendo em mente esse sistema de recompensa do cérebro.

É por isso que redes sociais e jogos acabam sendo tão viciantes. As redes sociais possuem algoritmos treinados para mostrar ao usuário coisas que ele gosta e que tende a se engajar mais, aumentando a dopamina liberada enquanto usa o aplicativo. Os jogos também fazem a mesma coisa ao oferecer recompensas por conquistas liberadas ou por dias de login, por exemplo.

Serviços de streaming por demanda oferecem entretenimento a qualquer momento, fazendo com que não seja mais necessário esperar o horário do programa desejado ou precisar deslocar-se até uma locadora para alugar um DVD. Esses serviços também rodam em diversos aparelhos diferentes, como computador, celular, tablet e televisões smart, trazendo ainda mais conveniência, diminuindo consideravelmente o esforço empregado para ter o prazer de assistir algo.

Outro artifício usado pelas redes são os vídeos curtos, que proporcionam entretenimento ao custo de poucos segundos ou minutos de atenção. A pessoa também pode passar para o próximo vídeo com apenas um toque, podendo consumir diversos vídeos em pouco tempo, aumentando a quantidade de dopamina liberada no organismo.

As interações nas redes também podem gerar esse pulso de dopamina, por meio dos likes e comentários de amigos e até mesmo de desconhecidos, fazendo com que o contato social prazeroso seja muito mais fácil e conveniente do que o esforço de sair para encontrar os amigos e ter um momento de lazer presencial.

O vício pode mascarar outros problemas

Não é raro que um vício surja como resposta a outros problemas, como problemas de regulação emocional, problemas de autoestima, problemas sociais, entre outros.

Pessoas que sofrem de transtornos mentais estão mais suscetíveis a desenvolverem vícios, seja em substâncias ou vícios comportamentais, como é o vício em telas.

Muitas pessoas usam as telas também para tentar se regular emocionalmente. Depois de um dia estressante no trabalho, por exemplo, muitos acabam usando os vídeos curtos das redes sociais para ter algum entretenimento e distração, ao invés de processar as emoções do dia e trabalhar na sua regulação.

Isso é especialmente perigoso em crianças e adolescentes que, com o aval dos pais, usam das atividades digitais para lidar com seus estados emocionais. Quando uma criança está fazendo birra, por exemplo, não é raro que os pais a entreguem um celular ou tablet para que ela se entretenha e pare de fazer birra, ao invés de trabalhar o problema em questão que provocou a birra.

Dessa forma, elas aprendem desde criança que as telas podem ser usadas para lidar com emoções desagradáveis, se tornando cada vez mais dependentes a medida em que a vida vai apresentando seus desafios.

Sintomas do vício em telas

Você pode perceber que está desenvolvendo uma dependência do uso de telas ao observar os seguintes sintomas:

  • Checar o celular constantemente para ver notificações;
  • Sentir-se ansioso ou irritado ao não poder usar o celular;
  • Negligenciar amigos e familiares em situações sociais para usar o celular;
  • Uso excessivo de redes sociais;
  • Fazer compras online compulsivamente;
  • Passar tempo demasiado jogando jogos eletrônicos a ponto de negligenciar obrigações e relações sociais;
  • Mudança de hábitos alimentares e de sono, como passar a madrugada olhando telas (jogando, assistindo etc.) e não respeitando os horários das refeições;
  • Irritar-se ao ter seus hábitos de jogo ou de uso de celular/telas criticados;
  • Reações agressivas às tentativas de terceiros de afastarem a pessoa das telas;
  • Continuar usando telas para entretenimento mesmo quando isso está trazendo prejuízos visíveis em outras esferas da vida, como vida familiar, amizades, relacionamentos, estudos e trabalho.

Existe um limite de tempo saudável para uso de telas?

Atualmente, não existe uma métrica que especifique quanto tempo de tela é considerado saudável no contexto de saúde mental.

No entanto, quando se trata de saúde ocular, a American Optometric Association (Associação Americana de Optometria, em tradução livre) considera que o uso contínuo de telas por duas ou mais horas por dia aumenta as chances de desenvolver uma condição chamada de “síndrome visual do computador”, em que a pessoa desenvolve problemas oculares como ardor nos olhos, visão cansada, olho seco, visão turva e dores no pescoço e nos ombros por conta do uso demasiado de telas.

Diagnóstico

Atualmente, o vício em telas não consta como um diagnóstico oficial no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM).

No entanto, o fenômeno não deixa de ser um problema e pode ser diagnosticado como “Transtornos devidos a comportamentos aditivos, não especificados” (código 6C5Z) segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID-11).

Alternativamente, quando a pessoa apresenta um vício específico em videogames, o diagnóstico pode ser “Transtorno de jogo eletrônico” (código 6C51).

Consequências do vício em telas

O vício em telas pode trazer uma série de consequências tanto à saúde física quanto mental.

No que tange a saúde física, o vício em telas pode trazer problemas oculares, como secura, visão cansada e turva, problemas nos músculos dos olhos, entre outros.

Já entre os problemas psicológicos e comportamentais estão:

Depressão

A depressão é um transtorno de humor caracterizado por humor deprimido, sentimentos de tristeza profunda ou apatia, falta de prazer, falta de vontade de realizar tarefas e coisas que antes gostava de fazer, entre outros.

Estudos indicam que a dependência de telas está associada ao desenvolvimento de quadros depressivos, variando de moderados a severos.

Uma questão sobre a depressão é que ela é bastante limitante por si só, mas quanto menos atividades a pessoa faz, maiores as chances de desenvolver o quadro também. Por isso, se a pessoa possui uma dependência de telas e acaba tendo um quadro limitado de atividades no dia-a-dia, é mais fácil para a depressão se manifestar.

Insônia

O uso de telas antes de dormir acaba prejudicando bastante a qualidade do sono. Há estudos que mostram que a exposição à luz até 30 minutos antes de dormir pode influenciar no tempo que leva para uma pessoa pegar no sono.

Enquanto muitos aparelhos apresentam uma opção de tornar a luz amarelada durante o horário noturno para reduzir esse efeito, a exposição a telas continua implicando em dificuldades para dormir e manter-se dormindo.

Por isso, o indiciado é diminuir o uso de telas no período noturno, dando preferência para atividades manuais ou hobbies como leitura de livros para manter-se entretido nas horas antes de dormir.

Estresse

Não raramente, o uso de telas está relacionado a níveis mais altos de estresse no dia-a-dia. Não é de se espantar quando a natureza das redes sociais está em manter o usuário frequentemente engajado, o que pode fazer com que o algoritmo selecione conteúdos que tanto entretém quanto estressam o usuário a fim de provocar reações.

Fear of Missing Out (FOMO)

O fenômeno do Fear of Missing Out (FOMO) ou medo de ficar de fora (em tradução livre) é uma condição na qual a pessoa sente um medo irracional de perder alguma informação em tempo real. Se uma pessoa está constantemente conectada, ela pode desenvolver esse medo de perder informações como notícias importantes ao se desconectar das redes.

Isolamento social

Em casos mais severos, a pessoa pode acabar entrando em isolamento social, tendo todas as suas interações sociais baseadas apenas em ambientes virtuais como aplicativos de mensagens instantâneas ou chamadas de áudio e vídeo.

Embora a pessoa não perca totalmente o contato com outras pessoas, é importante ressaltar que a interação pela internet não é a mesma coisa que a interação presencial, podendo abrir espaço para que a pessoa não desenvolva ou até mesmo perca habilidades sociais já desenvolvidas.

Como tratar o vício em telas?

O tratamento do vício em telas se torna um grande desafio hoje em dia por conta da necessidade de conexão constante que nossa sociedade criou. Grande parte dos trabalhos envolvem alguma tela, assim como grande parte das possibilidades de entretenimento também estão dentro de telas.

Além disso, a pressão social por estar presente nas redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas faz com que estejamos constantemente checando nossos celulares.

No entanto, não se trata de um caso perdido. Existem maneiras de tratar esse vício, diminuindo consideravelmente a dependência. Algumas dessas formas são:

Regra 20/20

A regra diz que a cada 20 minutos passados olhando para uma tela, deve-se olhar para outra coisa que esteja há pelo menos 6 metros de distância por 20 segundos antes de voltar a olhar para a tela. Essa regra existe para descansar a vista e prevenir os problemas oculares causados pelo vício em telas.

Estabelecer limites de tempo

Esta dica é bastante intuitiva, já que o objetivo é justamente diminuir o tempo olhando para telas. No entanto, não há exatamente um consenso de quanto tempo deveria ser o limite.

Há estudos que recomendam que o tempo de tela seja de no máximo 30 minutos por dia. No entanto, esse limite pode ser muito irrealista considerando o estilo de vida contemporâneo no qual as pessoas frequentemente trabalham em frente à tela e, em casa, há poucas opções de lazer fora das telas.

Por isso, uma possibilidade é tentar limitar o uso do celular, em particular das redes sociais, usando aplicativos de foco e de limitação que bloqueiam os aplicativos por um determinado período de tempo, por exemplo.

Outra possibilidade é estabelecer uma meta de passar entre 4 e 6 horas por dia longe de telas. Considerando que muitas atividades que fazemos hoje em dia é em telas, como conversar com amigos, jogar alguma coisa ou assistir um filme, talvez seja mais interessante não tentar diminuir o tempo de tela, mas sim aumentar o tempo longe das telas. O resultado é o mesmo, mas a mudança na perspectiva pode melhorar as chances de alcançar esse objetivo.

Detox digital

Da mesma forma que pessoas viciadas em substâncias precisam passar por um período de desintoxicação ao iniciar o tratamento de sua adicção, pode ser interessante fazer um período de desintoxicação digital para melhorar sua relação com as telas.

Isso implica em parar completamente d e usar telas a menos que seja necessário, como por exemplo no trabalho ou para entrar em contato com alguma pessoa rapidamente por mensagem, por exemplo.

Nesse processo, pode ser útil excluir as contas em redes sociais e aplicativos viciantes do celular.

Mudanças no estilo de vida

Muitas das dicas anteriores não funcionam muito bem se não houverem também mudanças no estilo de vida. É necessário encontrar outras coisas para fazer além de usar telas no dia-a-dia.

Encontrar novos hobbies manuais, que não dependam de telas, é uma alternativa bastante interessante. Além disso, pode-se dar preferência por interações presenciais com as pessoas, seja se aproximando de pessoas que já são do seu convívio ou até mesmo encontrando novos espaços de convivência, como clubes, cursos, centros religiosos, entre outros.

Tratar transtornos adjacentes

O vício em telas está correlacionado com sintomas depressivos, mas nem sempre é o vício em si que leva à depressão. Há muitos casos em que a depressão em si acaba levando ao vício, o que por sua vez acaba por retroalimentar a depressão, criando uma via de mão dupla.

Por isso, tratar transtornos mentais adjacentes que estejam causando limitações no funcionamento no dia-a-dia pode ser um grande aliado no combate ao vício em telas.

Terapia cognitivo-comportamental (TCC)

A terapia cognitivo-comportamental tem como objetivo alterar pensamentos e comportamentos disfuncionais, ou seja, que trazem prejuízos ao indivíduo. Nessa terapia, é possível identificar e modificar padrões de pensamento e de comportamento que acabam fortalecendo o vício em telas, além de ajudar a desenvolver novas maneiras de lidar com esses pensamentos disfuncionais que não sejam dependentes das telas.

O uso de telas é algo completamente normalizado na sociedade, mas é importante estar atento a sinais de que esse uso se tornou uma dependência. Se você percebe que está lidando com sintomas de vício em telas, não hesite em procurar um profissional da saúde mental!

Referências

https://www.addictioncenter.com/behavioral-addictions/screen-addiction/
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/23/actualidad/1553363424_494890.html

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