Diferença do autismo em meninos e meninas: subdiagnóstico em meninas e mulheres

Estima-se que exista um subdiagnóstico do transtorno em pessoas do sexo feminino por conta de diferenças na manifestação do autismo em meninas
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Estamos vivendo um momento no qual o aumento dos diagnósticos do transtorno do espectro autista é bastante expressivo. Isso não significa, necessariamente, que o número de pessoas no espectro está aumentando, mas sim que estamos ficando melhores em identificar os traços do transtorno mesmo em pessoas que não apresentam uma expressão estereotipada do autismo, como é o caso de muitas meninas.

Neste texto, vamos falar um pouco sobre as diferenças na apresentação do autismo em meninos e meninas, bem como fatores que podem estar contribuindo para um subdiagnóstico da condição nas pessoas do sexo feminino.

O que é o Transtorno do Espectro Autista (TEA)?

O transtorno do espectro autista (TEA) é um transtorno do neurodesenvolvimento que afeta as habilidades sociais, como a compreensão de pistas sociais, a formação de relações interpessoais e o comportamento em ambientes sociais.

Pessoas diagnosticadas com TEA costumam apresentar também dificuldades no processamento de informações sensoriais, necessidade de rotina e comportamentos repetitivos e restritos.

Trata-se de um transtorno que afeta pessoas de qualquer etnia e gênero, sendo que não há evidências de maior incidência em determinadas etnias. No entanto, quando se trata de gênero, por muito tempo tem se acreditado que é uma condição mais comum em meninos do que em meninas, sendo que pesquisas mais recentes (Loomes, Hull & Mandy, 2017) mostram uma proporção de 3:1 (em outras palavras, para cada 3 meninos diagnosticados, existe apenas 1 menina diagnosticada).

Por ser um espectro, o TEA se apresenta de formas muito variadas em diferentes pessoas. Enquanto alguns podem apresentar mais dificuldades sensoriais do que comportamentos repetitivos, outros podem ter uma imensa dificuldade em sair da rotina, mas não demonstram tantos problemas relacionados ao processamento sensorial.

Da mesma forma, a questão social pode se apresentar de diversas maneiras em indivíduos diagnosticados com TEA. Enquanto alguns podem necessitar de adaptações para conseguir falar (como conversores de texto para voz), outros podem conseguir se expressar bem verbalmente, mas demonstram dificuldades em entender nuances como sarcasmo e pistas sociais implícitas.

Por isso, o diagnóstico do transtorno do espectro autista é bastante complexo, sendo geralmente feito a partir de uma equipe multidisciplinar formada por psiquiatras, neurologistas, neuropsicólogos, psicopedagogos, entre outros.

Diagnóstico em meninos e meninas

Como dito anteriormente, pesquisas mostram que o transtorno tende a ser mais comum em meninos do que em meninas, sendo que, para cada 1 menina diagnosticada, existem 3 meninos diagnosticados.

No entanto, há discussões acerca dessas estatísticas. Estudos recentes sugerem que existe um subdiagnóstico do autismo em meninas. Em outras palavras, muitas meninas e mulheres dentro do espectro acabam não sendo diagnosticadas adequadamente, fazendo com que o transtorno pareça mais frequente em pessoas do sexo masculino.

Estima-se que isso ocorre porque o transtorno foi primeiro descrito tendo sido estudado exclusivamente em meninos, fazendo com que todos os critérios diagnósticos tenham sido desenvolvidos a partir de uma “representação masculina” da condição.

Hoje em dia, no entanto, sabe-se que meninas podem passar despercebidas por ter uma apresentação diferente do transtorno.

A seguir, falaremos um pouco sobre quais são os critérios diagnósticos do transtorno do espectro autista e como a “apresentação feminina” pode passar despercebida por esses critérios, bem como os fatores que influenciam no surgimento dessa apresentação diferente marcada por gênero.

Como é feito o diagnóstico do transtorno do espectro autista?

Em geral, o diagnóstico do TEA é feito por uma equipe multidisciplinar, envolvendo avaliações de psiquiatras, neurologistas, neuropsicólogos, psicopedagogos, entre outros.

Esses profissionais irão aplicar testes e entrevistas para avaliar se o paciente apresenta os critérios definidos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5).

Para que seja feito o diagnóstico, é necessário que o paciente apresente obrigatoriamente todas as questões descritas no critério A, enquanto não é necessário que a pessoa apresente tudo que está descrito no critério B.

Os critérios para o diagnóstico do TEA segundo o DSM-5 são os seguintes:

Critério A

Déficits persistentes na comunicação e interação social em vários contextos como:

  • Limitação na reciprocidade emocional e social, com dificuldade para compartilhar interesses e estabelecer uma conversa;
  • Limitação nos comportamentos de comunicação não verbal usados para interação social, variando entre comunicação verbal e não verbal pouco integrada e com dificuldade no uso de gestos e expressões faciais;
  • Limitações em iniciar, manter e entender relacionamentos, com variações na dificuldade de adaptação do comportamento para se ajustar nas situações sociais, compartilhar brincadeiras imaginárias e ausência de interesse por pares.

Critério B

Padrões repetitivos e restritos de comportamento, atividades ou interesses, conforme manifestado por pelo menos dois dos seguintes itens, ou por histórico prévio:

  • Movimentos motores, uso de objetos ou fala repetitiva e estereotipada (estereotipias, alinhar brinquedos, girar objetos, ecolalias);
  • Insistência nas mesmas coisas, adesão inflexível a padrões e rotinas ritualizadas de comportamentos verbais ou não verbais (sofrimento extremo a pequenas mudanças, dificuldade com transições, necessidade de fazer as mesmas coisas todos os dias);
  • Interesses altamente restritos ou fixos em intensidade, ou foco muito maiores do que os esperados (forte apego ou preocupação a objetos, interesse preservativo ou excessivo em assuntos específicos);
  • Hiper ou hiporreatividade a estímulos sensoriais ou interesses incomuns por aspectos sensoriais do ambiente (indiferença aparente a dor/temperaturas, reação contrária a texturas e sons específicos, fascinação visual por movimentos ou luzes).

Critério C

Os sintomas devem estar presentes precocemente no período do desenvolvimento, porém eles podem não estar totalmente aparentes até que exista uma demanda social para que essas habilidades sejam exercidas, ou podem ficar mascarados por possíveis estratégias de aprendizado ao longo da vida.

Critério D

Esses sintomas causam prejuízos clínicos significativos no funcionamento social, profissional e pessoal ou em outras áreas importantes da pessoa.

Critério E

Esses distúrbios não são bem explicados por deficiência cognitiva e intelectual ou pelo atraso global do desenvolvimento.

Diferenças entre meninos e meninas

Em geral, tanto a apresentação “masculina” quanto a “feminina” se encaixam nos critérios diagnósticos do TEA. No entanto, a apresentação “feminina” tende a passar despercebida pois os sinais presentes em meninos costumam ser mais evidentes.

Alguns exemplos de como o TEA se manifesta diferentemente em meninos e meninas são:

Comunicação e linguagem

Os meninos têm uma tendência maior a apresentar atrasos na fala, dificuldades com a linguagem e uma falta de interesse geral em conversar e manter interações sociais.

Já as meninas costumam ir no caminho contrário: muitas acabam desenvolvendo uma boa habilidade verbal, frequentemente adquirindo um vocabulário rebuscado para a idade, mas apresentam também dificuldades na compreensão de pistas sociais na linguagem, bem como dificuldades de compreensão da linguagem não verbal.

Interações sociais

Nas interações sociais, os meninos costumam apresentar uma tendência maior a evitar o contato visual e apresentam dificuldade em fazer amizades. É comum que eles também tenham uma grande dificuldade para responder a solicitações sociais (alguém chamar o seu nome, pedir um favor de forma implícita etc.).

Já as meninas tendem a tentar se encaixar mais, podendo aprender a seguir regras sociais, além de observar e imitar o comportamento de outras pessoas para não parecerem diferentes. Há também uma tendência a tentar agradar os outros.

No entanto, é válido ressaltar que esse esforço para se encaixar não vem naturalmente: as meninas precisam se esforçar ativamente o tempo todo para se adequar às situações sociais.

Além disso, embora as meninas tentem aprender regras de convívio social, geralmente elas precisam de demonstrações claras dessas regras para entenderem, pois há uma dificuldade em entender regras sociais implícitas.

Comportamento

Os meninos tendem a apresentar seus comportamentos repetitivos e estereotipados em mais situações do que as meninas. Enquanto as meninas se esforçam para se encaixar socialmente, podem acabar aprendendo a só demonstrar esses comportamentos quando estão sozinhas. Já os meninos podem não tomar esse cuidado socialmente, fazendo com que esses comportamentos sejam mais visíveis.

Além disso, os meninos tendem a apresentar mais dificuldades em demonstrar que estão prestando atenção, podendo agir de forma mais hiperativa (especialmente se há também um transtorno de déficit de atenção e hiperatividade associado).

Embora as meninas possam ter dificuldades em prestar atenção também, é mais comum que elas tentem ao menos disfarçar isso, tentando demonstrar que estão prestando atenção através de pistas comportamentais como responder “uhum” com frequência ou mexer a cabeça em afirmação. No entanto, esses comportamentos são aprendidos e não necessariamente indicam que elas estejam prestando atenção de fato.

Meninos e meninas podem apresentar grande ansiedade, mas a maneira que essa ansiedade é vista socialmente pode ser bem diferente, considerando papeis e expectativas de gênero.

Enquanto meninos que tentam tomar o controle da situação por conta de sua ansiedade podem ser vistos como decididos e obstinados, as meninas podem ser vistas simplesmente como controladoras e inflexíveis, fazendo com que essa ansiedade seja atribuída a um defeito de caráter ao invés de um transtorno.

Por que há diferenças entre meninos e meninas?

Não existem respostas precisas do porquê acaba surgindo essa diferença nos sinais do TEA em meninas e meninos. No entanto, existem diversas hipóteses:

Diferenças nas estruturas cerebrais

Existem algumas diferenças entre os cérebros de pessoas de sexo masculino e pessoas de sexo feminino.

Ainda que essas diferenças não sejam expressivas o suficiente para explicar totalmente os papeis de gênero (que acaba sendo um construto social, e não uma determinação biológica), elas levam a algumas alterações no processamento de informações.

No cérebro de pessoas do sexo masculino, há um maior desenvolvimento das áreas responsáveis pelo raciocínio lógico, enquanto, nas pessoas de sexo feminino, o cérebro é melhor desenvolvido em áreas relacionadas à linguagem.

Isso ajudaria a explicar porquê as dificuldades de comunicação tendem a ser mais amenas em meninas.

Uma pesquisa publicada em 2024 no periódico científico Molecular Psychiatry mostra que há diferenças também nas estruturas cerebrais entre meninos e meninas autistas. De acordo com a pesquisa, ambos os sexos apresentam um córtex mais espesso do que pessoas não autistas, mas, dentre as pessoas no espectro, as meninas tendem a ter o córtex ainda mais espesso que os meninos.

Isso significa que as variações na apresentação do TEA entre meninos e meninas podem estar relacionadas, também, a diferenças nas estruturas cerebrais que já apresentam alterações no autismo.

Expectativas sociais

É verdade que os papeis de gênero também podem ter um certo impacto na apresentação do autismo em meninos e meninas.

Meninas são condicionadas a serem sociáveis desde cedo, fazendo com que acabem aprendendo mais rapidamente algumas maneiras de contornar suas dificuldades sociais. Já os meninos não sofrem tanta pressão para a sociabilidade tão cedo.

Durante a criação, meninas são ensinadas a se portar “como moças” e a valorizar intensamente as relações interpessoais, enquanto meninos são mais influenciados a correr atrás de seus interesses e hobbies, deixando a sociabilidade em segundo plano.

Embora meninos também sejam ensinados a se comportar, é fato que as expectativas de comportamento entre meninos e meninas são bem diferentes, e que as meninas são estimuladas a apresentar comportamentos pró-sociais com mais frequência.

Camuflagem social (masking)

A camuflagem social, também conhecida como masking, é um fenômeno no qual a pessoa aprende a esconder seus traços autistas para parecer mais com uma pessoa que não está no espectro.

Algumas pessoas podem aprender técnicas para parecer que estão fazendo contato visual com os outros de forma mais prolongada (o que é uma dificuldade para pessoas no espectro), bem como disfarçar movimentos repetitivos (estereotipias), disfarçar seu entusiasmo pelos seus interesses especiais e até mesmo ensaiar expressões faciais, tons de voz e criar roteiros de diálogos para conseguir lidar melhor em situações sociais.

Embora pessoas de todos os sexos possam aprender técnicas de camuflagem social, estima-se que as meninas acabam desenvolvendo melhor essa habilidade, seja por questões cerebrais ou por questões sociais, como discutido anteriormente.

Interesses especiais socialmente aceitos

Uma das grandes características do transtorno do espectro autista é a presença de interesses especiais, que são interesses restritos e de grande intensidade.

Uma pessoa não autista que gosta de baleias, por exemplo, pode estudar bastante sobre baleias e entender relativamente bem sobre esses animais. Já uma pessoa no espectro com esse mesmo interesse pode parecer uma enciclopédia sobre baleias, pois tende a estudar e decorar diversos fatos e curiosidades, bem como ter conhecimentos muitas vezes acadêmicos sobre seus interesses, ainda que não tenha ensino superior ou tenha cursado o ensino superior em outra área, por exemplo.

Nos meninos, é comum que os interesses especiais estejam nas áreas da tecnologia e transporte, por exemplo. Já meninas tendem a apresentar interesses especiais que são socialmente esperados de meninas, como música, arte, literatura, moda, maquiagem, entre outros.

O transtorno do espectro autista (TEA) é uma condição do neurodesenvolvimento que acompanha a pessoa pela vida inteira e, quanto antes diagnosticada e quanto mais cedo forem feitas intervenções, maiores as chances da pessoa conseguir se adaptar e levar uma vida mais funcional.

No entanto, como existem diferenças na apresentação entre meninos e meninas acredita-se que pode haver um subdiagnóstico em meninas. Se você suspeita que apresenta sinais do espectro, não hesite em buscar a opinião de um profissional da saúde mental.

Referências

Andrews, D.S., Diers, K., Lee, J.K. et al. Sex differences in trajectories of cortical development in autistic children from 2–13 years of age. Mol Psychiatry 29, 3440–3451 (2024). https://doi.org/10.1038/s41380-024-02592-8

Loomes, R., Hull, L., & Mandy, W. P. L. (2017). What Is the Male-to-Female Ratio in Autism Spectrum Disorder? A Systematic Review and Meta-Analysis. Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry, 56(6), 466–474. https://doi.org/10.1016/j.jaac.2017.03.013

https://www.verywellhealth.com/differences-between-boys-and-girls-with-autism-260307
https://www.thefca.co.uk/fostering-autistic-children/difference-between-autistic-girls-and-boys/
https://www.thetransmitter.org/spectrum/autism-characteristics-differ-by-gender-studies-find/
https://www.autism.org.uk/advice-and-guidance/what-is-autism/autistic-women-and-girls

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