A memória é uma das coisas mais importantes para a nossa sobrevivência. Enfermidades que prejudicam a aquisição e retenção de memórias pioram significativamente a qualidade de vida, motivo pelo qual muita gente quer manter a memória saudável. Afinal de contas, quem não se irrita ao não lembrar onde deixou as chaves? Contudo, a verdade é que esses pequenos esquecimentos são bons para o cérebro, de acordo com um estudo publicado no periódico científico Neuron.
De acordo com este estudo, o esquecimento de algumas informações não é necessariamente uma falha do cérebro. Pelo contrário, trata-se de uma vantagem para o funcionamento adequado da mente. Isso porque, de acordo com a hipótese apresentada pelos autores, o objetivo da memória não é necessariamente reter informações ao longo do tempo, mas sim otimizar a tomada de decisões futuras.
Como isso funciona?
O tempo inteiro, a mente humana está sendo invadida pelos mais diversos tipos de informações. São os estímulos do ambiente, como sons, luzes, cheiros, bem como pensamentos, informações proprioceptivas (em relação ao próprio corpo, como a posição na qual você está sentado, por exemplo), entre outras. Uma sobrecarga tão grande de informações seria caótica para o cérebro e, portanto, ele é preparado para “filtrar” essas informações de acordo com aquilo que é mais relevante no momento.
Isso ocorre com a memória, que é diretamente afetada por essas filtrações. O processo de esquecimento de informações é cientificamente chamado de “transiência”, enquanto o processo de retenção é chamado de “persistência”. Embora lembrar das coisas claramente seja muito importante em alguns aspectos, a realidade é que manter memórias de praticamente tudo que já foi vivido seria um caos. A fim de reter aquelas informações que são mais importantes, o cérebro prefere esquecer informações irrelevantes, como, por exemplo, aquelas datas históricas especiais que você decorou só para passar na prova de história e nunca mais irá usar na vida.
A transiência auxilia na flexibilidade do pensamento, pois diminui a influência de informações obsoletas e desimportantes no processo de tomada de decisão no momento atual, além de prevenir o sobreajuste a eventos passados específicos, o que significa que certos eventos anteriores, que não são relevantes para a resolução de um problema atual, não poderão atrapalhar nos processos cognitivos atuais.
Em resumo, o objetivo da memória não é necessariamente reter informações ao longo do tempo, pois isso iria sobrecarregar o cérebro. Sendo assim, a função principal da memória seria auxiliar a tomada de decisões através da dinâmica presente entre a persistência e a transiência.
Esse funcionamento é extremamente importante em um mundo no qual as coisas estão mudando o tempo inteiro. Se você fosse lembrar, por exemplo, de todos os lugares onde colocou suas chaves, provavelmente levaria muito tempo até você lembrar a localização mais recente das chaves. Às vezes, pode até haver uma confusão e você achar que o último lugar que colocou as chaves foi, na realidade, o penúltimo lugar em que as colocou; contudo, isso não é motivo de preocupação, pois é um lapso de memória simples e demonstra que essa dinâmica entre persistência e transiência está funcionando como o esperado ─ mesmo que, às vezes, possa atrapalhar mais do que ajudar.
Problemas de memória
É importante ressaltar que essa dinâmica entre persistência e transiência é completamente saudável e não indicam qualquer tipo de problema de memória. De acordo com os autores do estudo, neurônios no hipocampo (uma das partes do cérebro mais importantes para a memória) encorajam o esquecimento das informações irrelevantes, mas isso é um processo distinto do esquecimento que ocorre quando a pessoa tem alguma enfermidade que prejudica a memória de fato, como o Mal de Alzheimer.
Portanto, ainda que essa dinâmica seja responsável por algumas inconveniências na memória, ela não será capaz de apagar informações realmente importantes, como o caminho de casa até o trabalho, por exemplo.
Contudo, ainda que esquecer certas informações seja saudável, é sempre importante ficar de olho no que poderia ser um sinal de alguma demência. Dentre alguns sinais estão: esquecimento do nome e identidade de pessoas familiares, perder-se em lugares familiares, dificuldades com a linguagem (repetir frases e perguntas, trocar palavras etc.), deixar as coisas em lugares “estranhos” (como chaves na geladeira, por exemplo) e não lembrar onde estão, dificuldade para fazer as tarefas do dia a dia como tomar os remédios certos ou preparar um prato que antigamente sabia fazer sem precisar olhar a receita, dificuldade para aprender novas habilidades, dificuldade de reter novas informações, entre outros.
É importante lembrar que a demência é um termo guarda-chuva para um grupo de sintomas cognitivos que interferem na rotina da pessoa. Por isso, nem toda demência pode ser Mal de Alzheimer, por exemplo. Além disso, enfermidades como o Mal de Alzheimer possuem outros sintomas que não apenas a perda de memória. Outro problema que pode ocasionar a perda de memória são tumores cerebrais.
Então, se você desconfia que a perda de memória de alguém é mais intensa do que a perda de memória típica do funcionamento normal do cérebro, procurar um médico para um diagnóstico adequado é imprescindível.
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O mecanismo de esquecimento do cérebro pode parecer algo que só traz problemas, mas na realidade ele é aliado do bom funcionamento mental. Se você desconfia que a perda de memória que está vivenciando é um pouco exagerada, não hesite em procurar um médico de confiança!
Referências
Richards, B. A., & Frankland, P. W. (2017). The Persistence and Transience of Memory. Neuron, 94(6), 1071–1084. doi:10.1016/j.neuron.2017.04.037
https://www.thehealthy.com/alzheimers/signs-your-family-members-forgetfulness-is-alzheimers/