Vivemos uma era em que o contato com figuras públicas como celebridades se tornou facilitado, o que pode ajudar na formação de relações parassociais (sensação de ter uma relação íntima com uma figura pública, que não é recíproca).
No entanto, o fenômeno do fanatismo não é novo, e as coisas que os fãs fazem por seus ídolos podem variar desde benéficas, como ajudar a promover artistas por meio de hashtags nas redes sociais, até criminosas, como perseguição (stalking), invasão domiciliar e até mesmo assassinato.
O fenômeno chama a atenção de profissionais da saúde mental, especialmente nestes últimos casos, em que o indivíduo pode chegar a ter condutas antissociais por conta de seu fanatismo. Portanto, neste texto, iremos falar um pouco sobre o fanatismo, como ele acontece, de que forma ser fã pode ser uma atividade saudável e quando o fanatismo se torna patológico.
Como surge o fanatismo?
Inicialmente, a relação de fã surge por conta de alguma identificação com a figura pública. Seja por concordar com seus ideais, por simplesmente admirar seu trabalho ou por se identificar com sua arte, o fã começa a criar uma sensação de intimidade com o ídolo.
Esse fenômeno é ainda mais prevalente hoje em dia, quando o acesso a essas figuras públicas se tornou mais fácil por conta da internet e das redes sociais. Com isso, forma-se o que chamamos de relações parassociais, nas quais uma pessoa sabe bastante sobre a outra e sente essa sensação de conexão e intimidade, mas isso não é recíproco pois, geralmente, a celebridade não tem nem ideia de que a outra pessoa existe.
Um exemplo de relação parassocial bastante evidente nos dias de hoje são os fãs da cantora pop Taylor Swift, que usa bastante das redes sociais para criar essa sensação de intimidade. Com suas letras bastante pessoais, a arte de Taylor é como um livro aberto de sua vida, fazendo com que muitas pessoas se identifiquem por terem passado por situações parecidas. A artista também costuma fazer enigmas em suas postagens nas redes sociais e em suas performances, instigando seus fãs a interagirem e criarem teorias a respeito de novos lançamentos. Por conta dessa sensação de proximidade, não é raro que a cantora sofra assédios e tenha sua privacidade invadida.
Escala: de admiração de fã até o fanatismo obsessivo
Em 2003, foi publicado um estudo no periódico científico Journal of Nervous and Mental Disease, chamado, em tradução livre, “Uma interpretação clínica das atitudes e comportamentos associados à adoração de celebridades”. Neste estudo, um dos destaques é uma escala do fanatismo, correlacionando as dimensões com os traços de personalidade postulados pelo psicólogo alemão Hans Eysenck.
As dimensões da escala são:
Entretenimento-Social
Quando as pessoas são fãs na dimensão entretenimento-social, os indivíduos se sentem bem apenas acompanhando o trabalho de seu ídolo, seja nas redes sociais ou consumindo seus trabalhos, entrevistas etc. A pessoa pode participar de grupos de fãs, mas se contenta em apenas acompanhar o trabalho do ídolo, sem a necessidade de interagir diretamente com ele.
Essa dimensão se faz mais comum em pessoas com o traço de personalidade extroversão, caracterizada por maior engajamento com o mundo externo, maior sociabilidade, energia e assertividade.
Intenso-Pessoal
Já na dimensão intenso-pessoal, a relação se torna, como o próprio nome diz, mais pessoal. É o caso das relações parassociais, em que o fã sente essa conexão e intimidade com a celebridade, mas não se trata de uma relação recíproca. É mais comum que esse tipo de fã tente uma aproximação com o ídolo, seja interagindo nas redes sociais, mandando cartas e presentes ou até mesmo se aproximando de pessoas do círculo social de seu ídolo.
Essa dimensão ocorre com mais frequência em pessoas com altos níveis do traço de personalidade neuroticismo, caracterizado por instabilidade emocional, ansiedade, preocupação demasiada, baixa tolerância à frustração, sentimentos de inveja e ciúme e solidão.
Limítrofe patológico
Ocorre quando o fanatismo está beirando a patologia, quando a pessoa tem fantasias intensas ou quando já apresenta comportamentos problemáticos, como o stalking (perseguição).
Esse tipo de fanatismo é mais comum em pessoas que apresentam mais traços de psicoticismo, caracterizado por uma tendência à agressividade e hostilidade no contexto interpessoal.
Quando ser fã se torna patológico?
Quando falamos de fanatismo patológico, estamos falando de uma dimensão de “ser fã” que chega a se tornar uma obsessão, evidenciando a possibilidade de traços patológicos na admiração que a pessoa apresenta.
Nestes casos, a pessoa pode negligenciar suas tarefas e responsabilidades do dia-a-dia, dedicando sua vida inteiramente à figura de quem é fã, chegando a ter problemas com outras pessoas por estar sempre em uma postura defensiva em relação ao seu ídolo, defendendo tudo que este faz, mesmo quando suas ações são claramente polêmicas ou prejudiciais para um grupo de pessoas.
Outra consequência negativa desse fanatismo é a “guerra de fãs”, em que fãs de artistas diferentes acabam entrando em discussões e fazendo comentários ofensivos acerca dos artistas “rivais” e dos fãs desses artistas. Isso é bastante visível na comunidade de fãs de pop coreano, que costumam eleger um grupo como seu favorito e acabam criando inimizades com fãs de outros grupos.
Em casos mais graves, existe a possibilidade do indivíduo desenvolver um transtorno chamado erotomania, no qual desenvolve sentimentos românticos e eróticos pelo ídolo e acredita de forma inabalável que é correspondido, chegando a caçar pistas nas redes sociais do ídolo, em seus pronunciamentos, suas músicas, entre outros. Nestes casos, a pessoa se convence que o ídolo só não está junto dela porque não pode, por algum motivo ou outro, e isso pode acontecer mesmo que a pessoa não tenha nenhum tipo de contato real com o ídolo.
Esses casos podem causar uma angústia profunda ao indivíduo, que pode ser tratada em terapia e com ajuda psiquiátrica. No entanto, há casos em que a pessoa começa a criar ressentimento do seu ídolo, podendo levar a comportamentos antissociais.
O resultado disso sempre acaba saindo na mídia, como quando há alguma invasão domiciliar, como ocorreu com Ana Hickmann em 2016, em que Rodrigo Augusto de Pádua invadiu o hotel em que a apresentadora estava hospedada, e chegou a disparar tiros contra sua família, deixando uma familiar da apresentadora ferida.
Ainda em 2016, houve um caso com a cantora Anitta, em que um rapaz se passou por um funcionário e conseguiu entrar no condomínio onde mora a cantora, declarando sua admiração aos gritos. Depois de um tempo, também começou a agredir verbalmente a cantora, xingando-a e dizendo coisas sem sentido.
Talvez o caso mais famoso de fanatismo patológico que levou a consequências desastrosas seja o assassinato de John Lennon, músico dos Beatles, em 8 de dezembro de 1980. O responsável pelo ataque foi Mark David Chapman, que tinha previamente pedido um autógrafo ao cantor. Mais cedo este ano, em fevereiro de 2024, uma das balas da arma que matou John Lennon foi a leilão, estimando que os fanáticos pela banda poderiam pagar uma grande quantia por um item tão único, ainda que mórbido.
É possível ser fã de forma saudável?
Sim, é totalmente possível cultivar admiração por uma figura pública de forma saudável. Na realidade, a admiração por celebridades e outras figuras públicas pode até mesmo ajudar pessoas, seja trazendo inspiração de vida ou ajudando a fazer novas amizades, cultivar relações e o sentimento de pertencimento.
Ter ídolos também é considerado parte normal do desenvolvimento na infância e na adolescência, mas não necessariamente se torna um problema durante a vida adulta.
Um estudo coreano publicado na revista científica Journal of Digital Convergence em 2016 buscava elucidar os impactos na saúde mental do uso de internet, interação com grupos de fãs e o sentido de comunidade em adolescentes. Os resultados mostraram que o uso de internet por si só não tinha impactos necessariamente significativos. No entanto, em especial no caso de meninas, o uso de internet relacionado a interações com grupos de fãs poderiam aumentar o sentido de comunidade, trazendo benefícios à saúde mental.
Um segundo estudo publicado no Journal of Counseling Research and Practice em 2021 buscou entender os impactos de participar de grupos de fãs na internet na saúde mental de mulheres adultas. Foram entrevistadas 12 mulheres que participavam de grupos de fãs de ficção científica por pelo menos 1 hora por dia há mais de um ano. Nos resultados, os pesquisadores puderam perceber que essas mulheres gostavam de participar desses grupos por causa da natureza não julgadora e das relações interpessoais que conseguiam formar. Todas as participantes relataram que a interação nesses grupos tinham impacto positivo na sua saúde mental e que frequentemente usavam estes grupos como uma ferramenta para lidar com questões emocionais.
Ser fã de alguma figura pública pode ser uma fonte de inspiração e alegria, podendo ajudar a criar conexão com outras pessoas e a lidar emocionalmente com as adversidades da vida. No entanto, há casos em que o fanatismo vai longe demais e isso pode ter consequências desastrosas.
Se você sente que está lidando com algum problema na saúde mental e isso pode estar influenciando a forma que admira seu ídolo, não hesite em procurar ajuda de um profissional da saúde mental!
Referências
Maltby, J., Houran, J., & McCutcheon, L. E. (2003). A Clinical Interpretation Of Attitudes And Behaviors Associated With Celebrity Worship. The Journal of Nervous and Mental Disease, 191(1), 25–29. doi:10.1097/00005053-200301000-00005
Choi, M., Cho, H., & Kim, Y. (2016). The Effect of Internet Usage, Fandom Activities and Sense of Community on Adolescents’ Mental Health in the Digital Era. Journal of Digital Convergence, 14(9), 349–358. https://doi.org/10.14400/JDC.2016.14.9.349
Anderson, C., Van Asselt, K. W. & Willis, B. (2021). Women in Online Science Fiction Fandoms: Psychological Well-Being. Journal of Counseling Research and Practice, 7(2). DOI: https://doi.org/10.56702/UCKX8598/jcrp0702.4https://aun.webhostusp.sti.usp.br/index.php/2022/07/19/a-linha-tenue-entre-o-amor-e-o-fanatismo-por-celebridades-musicais/
https://exame.com/pop/apos-mais-de-40-anos-bala-da-arma-que-matou-john-lennon-vai-a-leilao-nesta-semana/
https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2016/05/psicologia-explica-como-funciona-obsessao-por-celebridades.html