O ciúme é uma das emoções mais conhecidas e discutidas em nossa sociedade. Enquanto alguns defendem que se trata de uma emoção completamente normal, que todos sentem, há aqueles que dizem que não é normal e seria um sintoma de um problema subjacente.
Independente da maneira que seja visto, a verdade é que o ciúme existe e pode causar grandes prejuízos nas relações interpessoais. No entanto, nem sempre este sentimento é patológico de verdade, sendo apenas um sinal de que o medo de perder uma pessoa querida existe.
Contudo, existem condições que o tornam patológico. Dentre elas, existe a síndrome de Otelo, caracterizada por delírios de que o parceiro está sendo infiel, levando a comportamentos abusivos.
Neste artigo, iremos abordar a síndrome, bem como discutir de que forma o ciúme pode ser prejudicial nas relações e quais os possíveis diagnósticos diferenciais.
O que é a síndrome de Otelo?
A síndrome de Otelo, também chamada de ciúme patológico e delirante, é uma condição caracterizada por delírios em relação à fidelidade do parceiro amoroso. Em outras palavras, é um ciúme excessivo que frequentemente vem acompanhado da convicção de que o parceiro está traindo, mesmo que não haja qualquer tipo de evidência para tal.
Trata-se de uma condição rara e complexa que requer intervenção psicológica a fim de não prejudicar as relações do indivíduo. Em casos mais graves, a síndrome de Otelo pode levar uma pessoa a comportamentos hostis em relação ao parceiro, que podem chegar ao extremo da violência física. A condição afeta predominantemente homens, mas também pode ocorrer em mulheres.
O nome da síndrome vem da peça “Otelo, o Mouro de Veneza”, escrita pelo dramaturgo inglês William Shakespeare. A peça, que aborda temas como ciúme, inveja e vingança, narra a história de de Otelo, que está convicto de que sua esposa, Desdêmona, está o traindo. O ciúme intenso de Otelo eventualmente o leva a matar a esposa.
O que é ciúme?
O ciúme é uma emoção complexa que surge quando uma pessoa sente que sua relação com outra pessoa de seu convívio está em risco. Em geral, este sentimento está relacionado a inseguranças e possessividade. Em outras palavras, a pessoa com ciúmes sente medo de perder a outra, seja por alguma insegurança própria ou pelo sentimento de que o outro é uma posse.
Embora estejamos acostumados a falar de ciúme num contexto romântico, a verdade é que qualquer tipo de relação pode despertar este sentimento. Relações de amizade e até mesmo familiares podem ser prejudicadas por ele. Existem também casos de ciúme de objetos, que leva uma pessoa a não permitir que outras pessoas cheguem perto de suas posses.
Alguns ciúmes familiares são relativamente comuns e não necessariamente indicam um problema, como é o caso de um irmão mais velho ficar com ciúmes dos pais ao ver que estão dando mais atenção ao irmão mais novo. No entanto, também existem ciúmes familiares complexos, como pais que sentem ciúmes dos filhos quando estes começam a se relacionar romanticamente com outra pessoa.
De qualquer forma, a base do ciúme — independente do tipo de relação — é a percepção de que o outro está dando mais afeto a outras pessoas e o medo de acabar perdendo esse afeto. O ciúme também se manifesta em casos no qual a pessoa tem sentimentos de posse em relação a outra.
Quando o ciúme se torna prejudicial?
O ciúme nem sempre é tão prejudicial. Algumas pessoas encaram o sentimento como uma oportunidade para entender melhor suas próprias inseguranças, trabalhando essas questões na psicoterapia, por exemplo.
Contudo, o ciúme pode se tornar prejudicial quando leva a pessoa a expressá-lo de forma invasiva e privativa da liberdade do outro. As desconfianças causadas pelo ciúme podem levar a brigas e até mesmo atitudes violentas por parte da pessoa enciumada.
Além disso, mesmo quando a pessoa não demonstra o ciúme, ele ainda pode ser prejudicial ao causar preocupação excessiva e ansiedade constante, fazendo com que a pessoa esteja sempre lidando com sentimentos desagradáveis que eventualmente podem influenciar no surgimento de transtornos mentais.
Quais as causas da síndrome de Otelo?
Não existem causas específicas da síndrome de Otelo. No entanto, existem alguns fatores que podem influenciar no surgimento dos sintomas, como:
- Insegurança e baixa autoestima, que são grandes combustíveis para o ciúme;
- Presença de transtornos mentais com características psicóticas, como esquizofrenia, transtorno bipolar, transtorno de personalidade borderline, entre outros;
- Mal de Alzheimer, que pode causar a perda de habilidades cognitivas, resultando em alterações do juízo e, consequentemente, causando delírios;
- Uso abusivo de álcool (alcoolismo), que pode levar a danos cerebrais e perda de habilidades cognitivas. O uso abusivo de álcool também é conhecido por ter relação com o surgimento de delírios.
Embora nenhuma das condições citadas são causas diretas da síndrome de Otelo, as informações acerca desses fatores podem ser usadas para ajudar a identificar o problema em um contexto clínico.
Quais os sintomas da síndrome de Otelo?
Dentre os sintomas da síndrome de Otelo, estão:
- Convicção inabalável de que o parceiro está sendo infiel, mesmo sem evidências concretas;
- Preocupação excessiva e obsessiva com a infidelidade do parceiro;
- Comportamento controlador em relação ao parceiro, como verificar constantemente o celular ou monitorar as atividades do parceiro;
- Desconfiança de amigos, familiares e até mesmo de estranhos;
- Raiva e agressividade em relação ao parceiro ou terceiros que possam estar envolvidos na suposta traição.
Não raramente, estes sintomas levam a pessoa a desenvolver também sintomas depressivos e ansiosos, embora estes não necessariamente estejam presentes na síndrome de Otelo.
Vale ressaltar que alguns dos sintomas mencionados são entendidos como comportamentos abusivos que podem tornar a relação extremamente disfuncional (tóxica), como é o caso do controle, da invasão da privacidade do parceiro e a agressividade.
Como é feito o diagnóstico da síndrome de Otelo?
Primeiramente, é preciso entender que a síndrome de Otelo não é um transtorno oficialmente reconhecido no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). Isso significa que não se trata de um transtorno mental em si, mas sim um conjunto de sintomas específicos.
Não existe um exame específico feito para detectar a síndrome de Otelo. Desta forma, o diagnóstico é feito primariamente pelos sintomas relatados pelo próprio paciente, o que pode dificultar a identificação da síndrome, tendo em vista que o ciúme é uma emoção reprovada socialmente. Em outras palavras, pacientes que sofrem com a síndrome de Otelo podem ter vergonha de relatar seus sintomas a um profissional da saúde mental.
Em geral, por não se tratar de um diagnóstico oficial, os pacientes com síndrome de Otelo são frequentemente diagnosticados com transtorno delirante, caracterizado pela presença de delírios persistentes e não-bizarros que podem incluir temas como ciúmes patológicos e infidelidade.
Além disso, existem outros transtornos que podem causar sintomas parecidos com o da síndrome de Otelo, como a esquizofrenia, o transtorno bipolar (quando há sintomas psicóticos) e até mesmo o transtorno de personalidade borderline.
Por conta disso, é muito importante que seja realizada uma boa avaliação do quadro apresentado pelo paciente para fazer o diagnóstico diferencial e planejar o tratamento adequado para o transtorno identificado.
Como é feito o tratamento da síndrome de Otelo?
O tratamento da síndrome de Otelo vai depender do diagnóstico oficial do paciente. Diversos transtornos podem causar os sintomas da síndrome, mas o tratamento nem sempre é igual para todos os casos.
Nos casos em que o ciúme patológico está relacionado a delírios e demais sintomas psicóticos, o uso de medicação pode ser indispensável para melhorar os sintomas e a qualidade de vida do paciente e do casal.
Neste sentido, é comum o uso de antipsicóticos, antidepressivos e estabilizadores de humor a fim de atenuar sintomas como paranoia, ansiedade e sintomas depressivos. A escolha de medicação vai depender do diagnóstico oficial, sendo possível usar uma combinação de medicamentos para lidar com uma grande variedade de sintomas.
Quando os delírios de infidelidade chegam a extremos, o paciente pode precisar de internação psiquiátrica a fim de evitar comportamentos que podem colocar em risco a integridade física e psicológica de terceiros.
Já em casos em que não há sintomas psicóticos, a síndrome de Otelo pode ser tratada com psicoterapia. Mesmo nos casos de delírio, a psicoterapia pode ser usada como um tratamento conjunto, potencializando o tratamento farmacológico. Entenda:
Psicoterapia
A psicoterapia busca ajudar o paciente a compreender a si mesmo e saber lidar melhor com as condições adversas da vida. As diversas abordagens possuem métodos próprios para auxiliar o paciente no desenvolvimento pessoal e no tratamento de sintomas psicológicos.
No entanto, existe uma abordagem em específico que possui grande respaldo científico e pode ajudar bastante nos casos de síndrome de Otelo. Trata-se da terapia cognitivo-comportamental (TCC), que auxilia o paciente a identificar padrões de pensamento disfuncionais e aprender estratégias para lidar com a ansiedade e a desconfiança excessivas.
Terapia de casal
A terapia de casal é uma modalidade de psicoterapia que é realizada com os dois parceiros presentes. Seu objetivo é melhorar a comunicação e a confiança entre os parceiros, bem como ajudar a reconstruir o relacionamento caso este esteja muito prejudicado pelo ciúme excessivo.
Embora seja uma condição um tanto rara, os efeitos da síndrome de Otelo podem prejudicar muito o paciente e seus relacionamentos. Se você se identificou com algum sintoma ou sente que pode estar sofrendo de algum outro transtorno, não hesite em contatar um profissional da saúde mental!
Referências
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