Vergonha e culpa: como estes sentimentos afetam a saúde mental

Embora sejam parecidas, vergonha e culpa são sentimentos com diferenças significativas e impactam a saúde mental. Saiba mais!
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Afetos desagradáveis frequentemente estão relacionados a problemas e desafios na área da saúde mental. Sentimentos como tristeza e raiva são tidos como negativos e, muitas vezes, são socialmente vistos como inadequados, gerando um mal-estar ainda pior do que apenas a emoção em si causa.

No entanto, alguns afetos se mostram ainda mais relevantes nessa questão. É o caso da vergonha e da culpa, dois sentimentos bastante relacionados à maneira com a qual vemos a nós mesmos e somos julgados pela sociedade.

Estes dois afetos costumam ser confundidos, podendo até mesmo ser vistos como o mesmo sentimento, mas possuem algumas diferenças fundamentais. No entanto, é válido lembrar que eles podem ocorrer simultaneamente, o que pode dificultar a diferenciação entre os dois.

Neste artigo, iremos entender o que são vergonha e culpa, suas diferenças e similaridades, bem como seus impactos na saúde mental.

O que é culpa?

A culpa pode ser descrita como um sentimento autoconsciente caracterizado pelo reconhecimento de um erro cometido, bem como a auto responsabilização por tal erro. Em outras palavras, a pessoa que sente culpa percebe que cometeu um erro e sente que precisa se responsabilizar por ele.

Em geral, a culpa está relacionada a um evento específico no qual houve uma transgressão de alguma regra, norma ou valor, ou até mesmo alguma falha pessoal. Este sentimento pode surgir, por exemplo, após uma discussão com um amigo, colega ou familiar, na qual a pessoa percebe que sua reação foi demasiadamente agressiva e acabou magoando a outra pessoa, prejudicando a relação.

Ela pode surgir também como resposta a ações que vão contra os próprios valores da pessoa, como por exemplo quando uma pessoa entende que consumir bebidas alcoólicas é prejudicial a si mesma e acaba consumindo além da conta mesmo assim.

Com frequência, a culpa mobiliza a pessoa a buscar a reparação do erro, ou seja, a pessoa se sente endividada com quem foi prejudicado por suas ações e ativamente busca compensar pelo dano causado.

Pesquisadores e teóricos com uma perspectiva mais evolucionista entendem a culpa como um fator adaptativo para a vida em sociedade, tendo em vista que a busca por reparações ajuda a pessoa a se adequar às regras e normas de um determinado grupo social, garantindo uma melhor convivência com os outros.

O que é vergonha?

A vergonha também é um sentimento autoconsciente, porém se trata de um afeto mais voltado a si mesmo e sua autoimagem, ao contrário da culpa que é voltada à responsabilidade que uma pessoa tem por suas ações.

Em outras palavras, a vergonha surge como um mal estar em relação a si mesmo, enquanto a culpa se refere a um mal estar em relação às próprias ações. A partir dessa distinção, percebe-se que a vergonha não necessariamente está atrelada a situações específicas em que a pessoa cometeu um erro, mas sim a sentimentos de inadequação e até mesmo ódio de si mesmo.

Assim como na culpa, a vergonha frequentemente está relacionada a alguma transgressão de uma regra, norma ou valor. No entanto, ela também pode surgir pela simples desaprovação de um terceiro, ainda que a pessoa não tenha transgredido qualquer norma.

Contudo, ao contrário da culpa, a vergonha não mobiliza a pessoa em direção à reparação, mas frequentemente leva a pessoa à autocensura, ou seja, a pessoa vai aos poucos se policiando para não agir da forma que a faz sentir vergonha.

Como a vergonha nem sempre surge de uma transgressão real, ela pode ocorrer também em relação a ações e situações completamente normais e saudáveis, mas que por algum motivo não foram bem aceitas por outras pessoas. Quando criticada por terceiros, uma pessoa pode desenvolver sentimentos de vergonha por um hobby que possui, por exemplo, ou pela forma de se vestir, ou até mesmo por suas próprias emoções e opiniões.

Na vergonha, a transgressão não necessariamente é de normas e regras morais, mas sim das expectativas do outro ou de si mesmo. Neste sentido, uma pessoa que sente culpa sente arrependimento por um comportamento que emitiu, enquanto uma pessoa que sente vergonha sente-se mal por algum aspecto da sua própria identidade.

É importante ressaltar que a vergonha pode surgir como resposta ao sentimento de culpa, no qual a pessoa entende que cometeu um erro e causou prejuízos reais às suas relações e, por conta disso, desenvolve sentimentos negativos a respeito de si mesma.

Como a vergonha se desenvolve?

Por ser um afeto relacionado à autoimagem, a vergonha acaba se desenvolvendo de forma diferente da culpa. Em outras palavras, a vergonha aparece quando a pessoa começa a enxergar a si mesma como errada e inadequada, e não suas ações.

Alguns fatores podem acabar auxiliando no desenvolvimento da vergonha como um sentimento crônico. Pessoas que cresceram com pais e/ou cuidadores excessivamente críticos ou que sofreram abusos psicológicos e físicos podem acabar desenvolvendo sentimentos de que estão constantemente erradas ou que são um problema que precisa ser consertado.

A invalidação emocional também é um fator que pode influenciar no surgimento da vergonha, considerando que a pessoa é levada a acreditar que seus sentimentos são inadequados ou desproporcionais aos acontecimentos.

Leia mais: Invalidação emocional e suas consequências

Por fim, quando a pessoa sente culpa e não pode reparar os danos por algum motivo, essa culpa pode dar origem a sentimentos de vergonha. Isso por acontecer por diversos motivos, mas a título de exemplo pode-se pensar em uma relação na qual, não importa o que a pessoa faça para tentar reparar os danos de um erro, as tentativas não são reconhecidas ou são constantemente invalidadas.

Nestes casos, a pessoa continua sendo apontada como errada, inadequada ou culpada com frequência, o que pode causar essa mudança na autoimagem, fazendo com que a pessoa passe a ver a si mesma como errada.

Impactos da culpa e da vergonha na saúde mental

Diversos afetos negativos possuem um impacto significativo na saúde mental e culpa e vergonha não são exceções. Porém, as duas podem afetar a saúde mental de formas diferentes.

Em primeiro lugar, a culpa em si não necessariamente gera impactos sobre a saúde mental, considerando que existe a possibilidade de reparar os danos causados e, consequentemente, livrar-se desse sentimento.

No entanto, quando isso não é possível por algum motivo, como quando a pessoa impactada não está mais na vida da pessoa, por exemplo, a culpa pode se tornar crônica, sendo um peso constante que pode influenciar no surgimento tanto da vergonha quanto de sintomas depressivos, por exemplo.

Já a vergonha frequentemente afeta a autoimagem e leva a problemas de autoestima, ou seja, a visão que a pessoa tem de si mesma tende a ser bastante negativa. Existem pesquisas que mostram que pessoas que sentem vergonha de forma crônica têm mais chances de serem diagnosticadas com depressão e/ou transtornos ansiosos, como transtorno de ansiedade social ou até mesmo transtorno de ansiedade generalizada.

Também se sabe que adolescentes apresentam níveis maiores de vergonha do que outras faixas etárias. A adolescência é um período bastante complexo no que tange a sociabilidade de uma pessoa, pois é nessa fase que a pessoa está descobrindo sua individualidade, seus gostos e onde ela se encaixa no mundo. Por conta disso, a aprovação de seus pares tem um peso bastante significativo, o que pode causar sentimentos de vergonha com bastante frequência, podendo afetar a saúde mental de pessoas nessa faixa etária.

Culpa, vergonha e suicídio

Assim como estes sentimentos provocam impacto na saúde mental, existe uma correlação entre eles e o suicídio. Não é raro que pessoas que cometem suicídio expressem sentimentos de culpa, vergonha e remorso antes de efetivamente tirar a própria vida, vendo a morte como a única solução para estes sentimentos.

Pessoas que tem um histórico de tentativas de suicídio malsucedidas podem sentir vergonha, tanto do fracasso quanto da tentativa. Porém, esse sentimento pode acabar alimentando um quadro psicológico já fragilizado, aumentando as chances de uma nova tentativa.

Como superar a vergonha?

Ao contrário da culpa, superar sentimentos de vergonha pode ser bastante desafiador. Para superar a culpa, basta conseguir reparar o dano causado. Já no caso da vergonha, a questão é muito mais pessoal, sendo necessário trabalhar a própria autoimagem da pessoa para que estes sentimentos sejam elaborados.

Uma das maneiras de trabalhar a vergonha é admitir as partes de si das quais se têm vergonha para que seja possível mudá-las. Uma pessoa que sente vergonha por guardar bastante rancor, por exemplo, primeiro precisa aceitar essa tendência ao rancor, para então aprender a lidar com esses sentimentos e, enfim, conseguir se livrar da vergonha por não apresentar mais essa tendência.

No entanto, nos casos em que a vergonha surge de situações comuns e até mesmo saudáveis, como a vergonha de um hobby, é necessário trabalhar o sentimento de vergonha em si, elaborando questões relacionadas à autoimagem e necessidade de aprovação, por exemplo. Neste sentido, a pessoa pode trabalhar questões como autovalidação, imposição de limites, exercícios de autocompaixão, reconhecimento de relações tóxicas que alimentam a vergonha, entre outros.

A psicoterapia pode auxiliar bastante nesse processo de trabalhar e superar a vergonha, ajudando a pessoa a compreender as origens desse sentimento e modificar seu comportamento para alcançar os resultados desejados.

No entanto, quando essa vergonha vem acompanhada de sintomas de transtornos mentais, como a depressão e a ansiedade, o acompanhamento de um psiquiatra é de grande ajuda no tratamento.

Vale lembrar que o próprio diagnóstico de um transtorno pode contribuir para os sentimentos de vergonha, o que por sua vez acaba piorando os sintomas do transtorno. Por isso, o acompanhamento de uma equipe especializada em saúde mental pode ser imprescindível para uma boa elaboração desses sentimentos.

Este texto faz parte de uma série de textos do Setembro Amarelo, uma campanha da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) com foco na prevenção do suicídio a partir da educação e conscientização das pessoas acerca dos fatores de risco e comportamentos relacionados ao suicídio.

Se você lida com pensamentos suicidas ou conhece alguém que está apresentando sinais de ideação, não hesite em procurar a ajuda de um profissional da saúde mental!

Referências

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6143989/
https://www.verywellmind.com/what-is-shame-425328
https://www.scientificamerican.com/article/the-scientific-underpinnings-and-impacts-of-shame/
https://positivepsychology.com/shame-guilt/
https://www.psychologytoday.com/us/blog/emotional-nourishment/201911/perspective-guilt-and-shame

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