O transtorno afetivo bipolar (TAB) é um transtorno de humor caracterizado por episódios de humor maníaco e depressivo. O tratamento é feito com estabilizadores de humor, sendo os sais de lítio substâncias típicas para esse tipo de tratamento. O lítio é usado com o propósito de estabilizar o humor em pacientes com TAB há pelo menos 70 anos.
Apesar de não curar o problema, o lítio ajuda a estabilizar o paciente, reduzindo a frequência, duração e intensidade dos episódios de humor.
Continue lendo para entender mais sobre os sais de lítio, como utilizá-los, seus efeitos colaterais e contraindicações!
O que são sais de lítio?
Sais de lítio são substâncias utilizadas para a estabilização do humor em pacientes com transtorno afetivo bipolar. O lítio é uma substância altamente reativa e, portanto, é usada em compostos iônicos conhecidos como “sais de lítio”, como o carbonato de lítio.
Seu uso está relacionado ao tratamento de episódios agudos de mania bem como à prevenção de novos episódios a longo prazo. Atualmente, o lítio é uma substância padrão para o tratamento de transtorno bipolar.
Contudo, o efeito preventivo se aplica principalmente a episódios de mania, motivo pelo qual o lítio é frequentemente administrado junto com outros estabilizadores de humor com efeito antidepressivo.Existem evidências de que a substância previne o comportamento suicida durante episódios de depressão.
Embora o mecanismo de ação dos sais de lítio não seja muito bem explicado até hoje, sabe-se que ele ajuda a regular substâncias químicas no cérebro que estão relacionadas à desestabilização do humor.
Além disso, estudos mostram que o lítio aumenta a eficácia de tratamentos antidepressivos em pessoas com depressão unipolar. Sendo assim, dependendo do caso, ele também pode ser indicado para outros transtornos que não o transtorno afetivo bipolar.
A longo prazo, a resposta ao tratamento com lítio é melhor nos casos em que há fidelidade ao tratamento mesmo quando os sintomas estão em remissão (quando não há sintomas).
Breve história do uso do lítio para tratamento do TAB
O lítio começou a ser usado para o tratamento do transtorno bipolar na década de 50. Em 1949, um psiquiatra pouco conhecido chamado John Cade descobriu que poderia tratar estados de mania em pacientes com transtorno afetivo bipolar usando carbonato de lítio.
Entretanto, havia muitos relatos de alta toxicidade dos sais de lítio, na época usados para substituir o sal (cloreto de sódio) na cozinha. Por isso, Cade realizou experiências em animais para chegar a uma dose menos tóxica e observar as mudanças de comportamentos causadas pela substância.
Outros médicos e pesquisadores passaram a replicar os estudos de Cade e, com isso, constatou-se que é possível usar sais de lítio de maneira segura medindo a concentração de lítio no sangue com frequência para evitar que chegue a quantidades tóxicas.
Ainda que hajam outras substâncias que atuam como estabilizadores de humor atualmente, o lítio continua sendo muito estudado e utilizado. A principal preocupação acerca de sua segurança atualmente é o fato de que, a longo prazo, ele pode se tornar tóxico para os rins gradativamente, mas este é um efeito colateral bastante raro que pode ser previsto durante o uso do medicamento e costuma aparecer juntamente com o declínio normal da função renal devido à idade.
Como usar o lítio
O lítio deve ser tomado conforme o prescrito pelo psiquiatra. É comum a prescrição de uma única dose após o jantar. No entanto, é mais seguro dividir as doses em duas ou mais vezes por dia em caso de pessoas idosas, enfermas ou que utilizam doses altas.
Em pacientes jovens e relativamente saudáveis, é recomendado o uso de lítio em comprimidos de liberação retardada.
Não se deve tomar duas doses de uma vez caso o paciente tenha esquecido uma dose, pois não é seguro.
Caso haja mudança no laboratório do medicamento ou do sal de lítio usado, é necessário que essa mudança seja feita gradualmente, descontinuando o primeiro medicamento aos poucos e introduzindo o segundo lentamente.
Cuidados e segurança
Como dito anteriormente, o lítio pode ser bastante tóxico se a concentração no sangue for muito alta. Além disso, o uso dos sais de lítio afeta o sistema endócrino e, portanto, há uma série de cuidados que devem ser tomados.
Antes de iniciar o tratamento com lítio, é indicado uma série de exames para checar a concentração sanguínea de creatinina, ureia, sódio, potássio, cálcio e hormônios da tireoide e paratireoide.
Como o lítio afeta a concentração de todas essas substâncias, é indicado, também, refazer esses exames a cada um ou dois anos de tratamento com sais de lítio.
A dose de lítio deve ser diminuída pela metade caso haja febre acima de 38 ºC, desidratação ou diarreia.
O lítio também deve ser tomado com cuidado redobrado quando é usado simultaneamente medicamentos que podem diminuir a excreção renal da substância ou aumentar os efeitos tóxicos do composto. O mesmo vale quando a pessoa necessita realizar dietas pobres em sódio por razões médicas.
Alguns medicamentos que provocam os efeitos citados acima são os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs) como ibuprofeno ou nimesulida. No entanto, só é necessário tomar cuidado quando se faz o uso desses medicamentos com frequência. Caso a pessoa utilize esses remédios regularmente por períodos extensos, é recomendado realizar exames de sangue com frequência para medir a concentração de lítio na corrente sanguínea.
Outros medicamentos que devem ser tomados com cuidado quando se utiliza sais de lítio são alguns anti-hipertensivos (principalmente inibidores da enzima conversora de angiotensina), algumas substâncias usadas para tratar arritmia cardíaca e a maior parte dos remédios diuréticos. Isso porque esses remédios tendem a aumentar os níveis de lítio na corrente sanguínea, aumentando as chances de intoxicação.
O tratamento com lítio deve ser parado entre 48 e 72 horas antes de uma cirurgia que necessita anestesia geral e enquanto o paciente não pode beber ou comer normalmente. Não é necessário interromper o tratamento em caso de cirurgias com anestesia local.
É possível voltar com o tratamento quando o paciente encontra-se bem hidratado.
Caso o paciente esteja fazendo tratamento com eletroconvulsoterapia, o lítio deve ser interrompido para prevenir sintomas neurológicos.
Dosagem e concentração sanguínea
A dosagem adequada para cada paciente é baseada na resposta clínica e nas medições de concentração de lítio no sangue, a fim de conseguir o máximo de efeito sem atingir a toxicidade. Recomenda-se fazer um exame de sangue para medir a quantidade de lítio na corrente sanguínea 1 semana após o início do tratamento e então, novamente, a cada 3 meses. Quando o paciente é considerado estável, os exames de sangue podem ser feitos a cada 6 meses, dependendo de questões como idade, saúde e resposta ao tratamento.
Os exames devem ser feitos cerca de 12 horas desde a última dose. Então, se o paciente costuma tomar o medicamento às 20:00, o exame deve ser feito às 8:00 do dia seguinte.
Caso haja alterações na dose, deve-se esperar entre 5 e 7 dias antes de fazer um novo exame para que a distribuição do medicamento seja estabilizada.
As concentrações adequadas de lítio no sangue durante o tratamento são entre 0.50 -1.00 mEq/L.
Esses níveis podem variar de paciente para paciente. Pacientes mais jovens e com sintomas de mania e psicose severos podem necessitar doses mais altas, enquanto pacientes idosos podem tolerar apenas doses mais baixas.
Pacientes que não fazem uso de sais de lítio não devem fazer esse exame pois não há parâmetros “normais” desta substância no sangue. Profissionais que fazem a solicitação do exame antes de iniciar a prescrição ou são mal informados ou mal intencionados.
Efeitos colaterais e contraindicações
Os efeitos colaterais mais comuns durante o tratamento com lítio são:
- Tremores;
- Náusea;
- Fadiga;
- Apetite aumentado;
- Contagem elevada de glóbulos brancos;
- Sede;
- Aumento na frequência da urina.
Alguns desses efeitos colaterais dependem da dose e podem melhorar com o tempo ou com o uso de outros medicamentos, como é o caso dos tremores.
Existem alguns efeitos colaterais mais raros, como o prejuízo nas funções cognitivas relatado por alguns pacientes. Esse efeito colateral é mais comum em pessoas idosas, que já estão com um declínio natural das funções cognitivas, mas que percebem que, com o uso do medicamento, elas ficam ainda piores.
Problemas gastrointestinais podem ser reduzidos trocando por um outro sal de lítio.
Em alguns casos, pode haver hipotireoidismo que pode ser tratado com suplementos do hormônio da tireoide. Há também uma possibilidade do surgimento de hiperparatireoidismo e hipercalcemia durante o tratamento com lítio.
Em pacientes idosos, além dos efeitos já citados, outros efeitos colaterais observados são:
- Confusão mental;
- Dificuldades para andar e manter o equilíbrio;
- Inquietação e movimentos agitados;
- Declínio na função renal;
- Hipotireoidismo;
- Piora na diabetes mellitus;
- Inchaço nas pernas (edema periférico).
O lítio não deve ser usado por pacientes que sofrem ou sofreram de infarto agudo do miocárdio, insuficiência renal aguda ou doenças raras do ritmo cardíaco, como síndrome de Brugada e arritmia ventricular.
O lítio pode ser usado cautelosamente na presença das seguintes condições:
- Arritmia cardíaca;
- Declínio na função renal;
- Psoríase;
- Leucemia mielóide;
- Doença de Addison (insuficiência adrenal primária);
- Hipotireoidismo;
- Anormalidades na postura e movimento devido condições neurológicas;
- Miastenia grave;
- Epilepsia.
Existe também o risco do desenvolvimento de uma síndrome rara chamada Síndrome de Neurotoxicidade Irreversível Causada Pelo Lítio que prejudica o funcionamento do cerebelo, parte do cérebro responsável pelo equilíbrio e movimentação. O paciente é acometido por prejuízos na coordenação motora e dificuldades para andar.
Intoxicação por lítio
Quando a concentração de lítio na corrente sanguínea está anormalmente alta — acima de 1.5 mEq/L —, há risco de intoxicação. Os sintomas são:
- Tremor severo;
- Confusão;
- Vômitos;
- Dores abdominais;
- Diarreia;
- Aumento anormal dos reflexos;
- Dificuldades de fala;
- Ritmo cardíaco anormal;
- Hipotensão;
- Convulsões.
Caso esses sintomas ocorram, o psiquiatra ou um médico de confiança deve ser contatado imediatamente. É necessário fazer exames para determinar o nível de lítio na corrente sanguínea. Se esse nível for superior a 2 mEq/L, pode ser necessário hemodiálise para remover o lítio do organismo.
Algumas vezes, os sintomas da intoxicação acontecem mesmo quando os níveis de lítio na corrente sanguínea não estão elevados. Isso ocorre porque, às vezes, a quantidade de lítio circulando no sangue não é a mesma quantidade presente no sistema nervoso central. Nesses casos, é necessário interromper o uso de lítio e fazer uma nova avaliação clínica.
Desmame do lítio
“Desmame” é como é chamado quando uma pessoa para de utilizar um medicamento que usa há muito tempo. Interromper os medicamentos de maneira abrupta pode ser muito perigoso e, por isso, é necessário diminuir as doses gradualmente, como um bebê na fase de desmame — por isso o nome.
No caso do lítio, caso a interrupção seja rápida demais, há risco de reincidência dos sintomas, necessidade de hospitalização e comportamento suicida. Esses riscos são mais altos nos 6 a 12 meses após a descontinuação repentina do uso do remédio.
Lítio e suicídio
Como dito anteriormente, o uso de lítio diminui o comportamento suicida durante a depressão, tanto no caso de pacientes com depressão bipolar quanto unipolar.
Estudos realizados em pessoas com TAB tipo I e tipo II mostram que a frequência de suicídios ou tentativas eram 6,4 vezes menos frequentes durante o tratamento com lítio do que antes do tratamento ou até após o tratamento.
No entanto, o risco de comportamentos suicidas após a descontinuação do tratamento se mostrou 20 vezes maior, porém, após alguns meses, esses comportamentos voltaram à frequência normal de antes do tratamento. Além disso, quando a descontinuação do medicamento é feita de maneira abrupta, o risco de suicídio é duas vezes mais alto do que quando o medicamento é retirado gradualmente no curso de, pelo menos, 2 semanas.
Em pacientes com depressão unipolar, o risco de suicídio e tentativas é diminuído em cerca de 76% se comparado com outras alternativas de tratamento, como o uso de antidepressivos e anticonvulsivantes.
Outras pesquisas mostram que talvez o efeito anti-suicídio do lítio seja parcialmente independente do efeito estabilizador de humor e, portanto, quando um paciente consegue apenas uma resposta clínica parcial ao tratamento, como uma leve estabilização no humor, ele ainda pode não estar se beneficiando dos efeitos anti-suicídio do lítio.
Uso de lítio na gravidez e pós-parto
Como grande parte dos medicamentos, o lítio apresenta alguns riscos se usado durante a gravidez. Em primeiro lugar, existe uma chance do feto desenvolver uma malformação congênita rara chamada anomalia de Ebstein. No entanto, esse risco é relativamente baixo mesmo em gestantes usando lítio.
Sendo assim, cabe ao médico e à paciente conversar para decidir se o lítio deve ser interrompido ou não por conta de gestação. Caso o tratamento seja interrompido, há chances de recaídas associadas à falta da medicação.
Em alguns casos, o lítio é indicado durante a gestação. Nessa situação, é indicado a realização de exames de sangue para checar a concentração sanguínea de lítio a cada mês e, no terceiro trimestre, a cada semana.
Não é necessário parar o tratamento antes do parto, mas é necessário medir o lítio no sangue ao menos duas vezes por semana nas duas semanas após o parto.
Caso o tratamento seja interrompido durante a gestação, recomenda-se retomá-lo imediatamente após o parto, pois se trata de um período em que a paciente está vulnerável a episódios de humor.
Entretanto, a amamentação durante o tratamento com lítio não é recomendada visto que a concentração de lítio no leite materno é alta (cerca de metade da concentração sanguínea). Recomenda-se, nestes casos, o uso de fórmulas infantis para alimentar o bebê.
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Não se esqueça de ler a bula sempre que for usar um novo medicamento. Caso haja efeitos desagradáveis, entre em contato com o psiquiatra o mais rápido possível.
Referências
Tondo et al. (2019) Clinical use of lithium salts: guide for users and prescribers. Int J Bipolar Disord, 7:16. https://doi.org/10.1186/s40345-019-0151-2