Você já esteve andando na rua, chegou em um lugar e de repente se questionou “como eu vim parar aqui?”, sem lembrar do trajeto que realizou até o momento? Então você já vivenciou uma dissociação. Esse fenômeno é comum e todos passam por ele, sem que isso seja indicativo de que algo está errado.
A dissociação pode ser definida como uma falha na integração de memórias e percepções, afetando as emoções, identidade, representação corporal, entre outros. Embora isso seja normal no dia a dia de todo mundo, raramente ela traz algum prejuízo verdadeiro na vida da maioria das pessoas.
Contudo, existem algumas pessoas que vivenciam dissociações com tanta frequência e intensidade que há prejuízos significativos em suas vidas. Essas pessoas sofrem com os chamados transtornos dissociativos, um termo guarda-chuva para transtornos mentais cujo principal mecanismo adjacente é a dissociação.
Os transtornos dissociativos afetam a continuidade entre pensamentos, memórias, ambiente, ações e identidade. A pessoa se distancia da realidade de maneira involuntária e costuma ter dificuldade em se lembrar dos acontecimentos depois, o que pode ser extremamente prejudicial dependendo da intensidade e da duração da dissociação.
Quais são os transtornos dissociativos?
De acordo com a 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), os principais transtornos dissociativos são:
Amnésia dissociativa
A amnésia dissociativa diz respeito a quando uma pessoa não consegue se lembrar de informações a respeito de si mesma. É diferente de um simples esquecimento das informações, que geralmente são recuperadas com o tempo.
Na amnésia dissociativa, a pessoa pode perder completamente memórias a respeito de si mesma, de acontecimentos importantes em sua vida, detalhes acerca de sua identidade e personalidade, entre outros, sem que haja uma causa orgânica para tal.
Em geral, as memórias “esquecidas” nesses casos são memórias traumáticas, especialmente de eventos aversivos ocorridos durante a infância. Porém, em casos mais graves (e raros), a pessoa pode esquecer completamente quem ela é e sua história de vida.
No Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais consta que a amnésia dissociativa pode ser categorizada em:
- Localizada: Refere-se a um evento ou a um período de tempo;
- Seletiva: Refere-se a algum aspecto específico de um evento;
- Generalizada: Esquecimento da identidade e história de vida.
Com frequência, o indivíduo também não tem consciência do esquecimento. Ele não sabe que tem informação faltando; é como se certos eventos nunca tivessem realmente acontecido com ele.
Transtorno dissociativo de identidade
Você já ouviu falar em “personalidade múltipla”? É assim que o transtorno dissociativo de identidade era chamado antigamente, e a nomenclatura, embora não seja mais oficialmente usada, ainda é bem popular. Neste transtorno, a fragmentação da identidade de uma pessoa é tão intensa que ela apresenta diversos estados de personalidade, frequentemente chamados de alters.
O indivíduo sente que existem diversas pessoas dentro de si e frequentemente tem dificuldade em lembrar do que as outros alters fizeram. Os alters possuem seus próprios gostos, memórias e história de vida, podendo variar até mesmo em gênero e idade.
Esse transtorno costuma se formar durante a infância, quando uma criança sofre muitos abusos frequentemente. Isso ocorre porque, durante a infância, a personalidade da criança ainda não está totalmente integrada, fazendo com que ela tenha “múltiplas personalidades”.
Crianças que sofrem com dissociação frequentemente acabam tendo dificuldade em integrar todas essas facetas da personalidade, desenvolvendo o transtorno dissociativo de identidade. É como se a dissociação frequente impedisse essa integração das identidades em uma só, fazendo com que se mantenham desintegradas até a vida adulta.
A pessoa que sofre com transtorno dissociativo de identidade pode entrar em estados de fuga dissociativa, no qual vai parar em lugares que não sabe como foi parar e nem o que foi fazer lá. Esse estado de fuga é muito retratado no cinema e você provavelmente já ouviu falar em algum caso, fictício ou não.
Transtorno de despersonalização/desrealização
Esse transtorno é diagnosticado quando uma pessoa passa por frequência pelos fenômenos de despersonalização, conceituado como uma sensação de desconexão consigo mesmo, e/ou desrealização, que pode ser descrito como uma desconexão com o mundo e com as pessoas, na qual tudo parece irreal.
A pessoa pode apresentar um comportamento não responsivo ou parecer não ter emoções.
Essas experiências podem acontecer em pessoas saudáveis, mas quando são frequentes, intensas e duradouras, trazendo prejuízos significativos, pode-se considerar um transtorno dissociativo.
A pessoa que sofre com essas condições sabe que ela está vivenciando um fenômeno diferente, tendo consciência de que está em um estado alterado. Não há perda de consciência da realidade. Sendo assim, a pessoa ainda tem consciência das coisas que estão acontecendo ao seu redor, apenas sente uma desconexão entre ela e o mundo exterior. Não há sintomas psicóticos como delírios e alucinações.
Ainda assim, esses estados são bastante desconfortáveis e podem trazer sofrimento significativo para o indivíduo.
Causas
Os transtornos dissociativos ocorrem quando uma pessoa passa por estados dissociativos intensos ou com muita frequência.
A dissociação pode ser vista como um mecanismo de defesa em situações de muito estresse. Através desse distanciamento, a pessoa evita de se envolver emocionalmente com a situação, pensando de forma inconsciente “isso não está acontecendo comigo”.
O problema é que a dissociação também afeta o processamento das memórias e percepções acerca desses eventos e, com isso, a pessoa pode continuar vivendo como se estivesse em um momento traumático mesmo após o término do evento.
Geralmente pessoas que desenvolvem transtornos dissociativos passam por diversos eventos traumáticos como abusos e maus-tratos durante a infância, acidentes, desastres, morte de entes queridos, entre outros, ou conflitos internos intoleráveis.
Embora não sejam transtornos dissociativos em si, há uma grande ligação do fenômeno da dissociação com transtornos de estresse pós-traumático e transtorno de estresse agudo. Esses transtornos apresentam sintomas dissociativos como amnésia, flashbacks, despersonalização e/ou desrealização.
Sintomas
Os sintomas dos transtornos dissociativos podem variar conforme o transtorno, sendo os mais comuns:
- Perda da continuidade da experiência;
- Perda de memórias de determinados acontecimentos, pessoas, períodos de tempo, entre outros;
- Sensação de desprendimento de si mesmo ou das suas emoções (despersonalização);
- Sensação de desprendimento do ambiente, incluindo a sensação de irrealidade do mundo e das pessoas ao redor (desrealização);
- Fragmentação da identidade;
- Amnésia dissociativa (perda de memória de informações pessoais importantes).
Transtornos dissociativos tem cura? Qual o tratamento?
O tratamento varia de acordo com o transtorno dissociativo que a pessoa sofre. Em geral, psicoterapia pode ajudar bastante a elaborar os traumas e diminuir os sintomas, auxiliando a controlar melhor os estados dissociativos. No entanto, geralmente não há cura definitiva para esses transtornos.
A abordagem utilizada com mais frequência para tratar os transtornos dissociativos é a terapia cognitivo-comportamental (TCC). Em alguns casos, utiliza-se a terapia dialética-comportamental, uma adaptação da TCC para pacientes de alto risco, como pacientes com ideação suicida frequente.
Não existem medicamentos específicos para o tratamento dos transtornos dissociativos, mas pode ser indicado o uso de antidepressivos ou ansiolíticos para lidar com possíveis comorbidades que podem piorar os sintomas desses transtornos.
Embora a dissociação seja comum e frequentemente saudável para a manutenção do nosso bem-estar, ela pode ser bastante prejudicial para pessoas que sofrem com dissociações frequentes. Se você se identificou com algum dos sintomas citados no texto, não se esqueça de entrar em contato com um psicólogo ou psiquiatra de confiança!
Referências
American Psychiatric Association (2014). DSM-5 – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artmed.
https://www.mayoclinic.org/diseases-conditions/dissociative-disorders/symptoms-causes/syc-20355215
https://www.psychiatry.org/patients-families/dissociative-disorders/what-are-dissociative-disorders
https://www.nami.org/learn-more/mental-health-conditions/dissociative-disorders