Delírio e outras alterações no juízo crítico do pensamento

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A mente humana é cheia de mistérios e compreendê-la é uma tarefa difícil. Diversos psiquiatras e psicólogos desenvolveram teorias para tentar compreendê-la, mas mesmo hoje não se tem conhecimento completo sobre as capacidades da nossa mente. Entretanto, os estudos nos levaram a algum lugar, e hoje é possível saber quando uma pessoa está com uma boa saúde mental ou não.

Um dos meios de saber isso é analisando a função do pensamento, que consiste na capacidade de elaborar, relacionar e criticar ideias. De acordo com Paulo Dalgalarrondo em seu livro Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais, o pensamento é constituído por três elementos: conceitos, juízo e raciocínio.

Os conceitos são representações mentais sem informações sensoriais sobre um determinado objeto ou ideia. Já o juízo, foco deste texto, é o estabelecimento de relações significativas entre dois conceitos ou mais. O processo que permite que o juízo aconteça se chama raciocínio. Quando há uma alteração no raciocínio, há no juízo, e vice-versa.

Alguns transtornos mentais são conhecidos por prejudicarem o juízo crítico, ou seja, a pessoa não consegue raciocinar claramente e formar juízos realistas. É o caso de transtornos psicóticos como a esquizofrenia, e até mesmo transtornos de humor, como a depressão.

Algumas alterações do juízo crítico do pensamento

Pensamento dereístico

O pensamento dereístico é caracterizado por uma certa oposição ao pensamento lógico e realista. Em inglês, ele é popularmente chamado de “wishful thinking”, pois seu conteúdo costuma ir de acordo com aquilo que a pessoa deseja ou acha válido, desconsiderando tudo aquilo que vai contra suas convicções. É como se o pensamento deixasse de se adaptar à realidade para se adaptar apenas aos desejos do indivíduo.

Está presente em uma grande variedade de transtornos mentais, como, por exemplo, na esquizofrenia e transtornos de personalidade (borderline, esquizotípica, histriônica, narcisista, entre outros). Eventualmente, esse tipo de pensamento é encontrado em crianças, adolescentes e adultos saudáveis.

Pensamento mágico

Similar ao pensamento dereístico, o pensamento mágico está relacionado aos desejos, fantasias e medos do indivíduo. Nele, há associações que não fariam qualquer sentido lógico. Ele pode até mesmo servir de base para ritos religiosos, sem que seja verdadeiramente nocivo para o indivíduo, desde que esteja confinado a esse contexto e não se espalhe para todas as esferas da vida.

O pensamento mágico indica relações subjetivas entre ideias com uma correspondência objetiva, ou seja, aquilo que é feito de maneira subjetiva tem frutos na esfera objetiva. Um exemplo seria realizar uma simpatia para atrair dinheiro: utiliza-se símbolos (subjetivo) para ter resultados reais (objetivo).

Esses pensamentos estão presentes com frequência na esquizofrenia, em transtornos de personalidade, em quadros obsessivos-compulsivos (nos quais os pensamentos obsessivos culminam em rituais dotados de um pensamento mágico), entre outros. O pensamento mágico também está presente em contextos místicos ou religiosos, sem que isso indique qualquer prejuízo à saúde mental.

Delírio

O termo “delírio” é frequentemente empregado para denominar quando uma pessoa está tendo pensamentos irreais, praticamente impossíveis. Essa definição não deixa de ser verdade, mas, na psicopatologia, ela vai mais além: um delírio é uma ideia que, além de irreal, muitas vezes pode ser bizarra e que é aceita pelo juízo crítico da pessoa.

Sendo assim, se a pessoa está pensando que existem extraterrestres morando no seu sótão, não importa quantas vezes alguém prove o contrário, ela continuará acreditando no seu pensamento inicial. O delírio é aceito sem questionamentos e a pessoa passa a defender seu pensamento com muita convicção, muitas vezes até querendo provar a realidade de seu pensamento para os outros.

Uma última maneira muito precisa de conceituar o delírio é “juízo patologicamente falso”. Isso quer dizer que, além de ser uma ideia não real e muito bem aceita pela pessoa, o delírio também causa prejuízos ao indivíduo, tornando-se uma condição patológica.

O conteúdo dos delírios podem ser bastante diferentes, mas alguns são mais comuns que os outros. Por exemplo:

  • Delírio persecutório: A pessoa acredita estar sendo perseguida por pessoas, tanto conhecidas quanto desconhecidas, que estão tramando contra ela e tentando prejudicá-la. Essas pessoas podem acreditar que seus familiares estão tentando envenená-la, prendê-la, matá-la, entre outros;
  • Delírio de referência: Neste tipo de delírio, a pessoa acredita que fatos cotidianos são referentes à sua pessoa. Por exemplo, ao andar na rua e escutar a conversa de outras pessoas, acredita que estão falando de si. Ao ver pessoas rindo, acha que estão rindo dela. Até mesmo ao ouvir programas de rádio, pode acreditar que há mensagens escondidas para si nestes programas;
  • Delírio de influência ou controle: A pessoa acredita que está sendo controlada por alguma força, pessoa ou entidade externa. Crê até mesmo que seus pensamentos estão sendo controlados ou influenciados e que está perdendo a capacidade de resistir a essa influência;
  • Delírio de grandeza: Sentimentos de poder, riqueza, capacidades especiais, entre outros, estão relacionados ao delírio de grandeza, no qual a pessoa acredita ser especial, possui um destino extraordinário e é superior aos outros;
  • Delírio de ciúmes ou infidelidade: Enquanto o ciúme é normal e aceitável até certo nível, a pessoa com delírio de ciúmes ou infidelidade tem plena convicção de que está sendo traída, mesmo que haja milhares de evidências que provem o contrário.

Pensamento deliroide

Origina-se em outras áreas de atividade mental que não o próprio pensamento, como por exemplo a afetividade ou a consciência. Indivíduos com depressão muito grave podem sofrer delírios de ruína ou culpa, nos quais pensam que tudo está perdido, que são culpados por coisas que não são sua culpa, ou acreditam piamente que suas vidas não irão melhorar, enquanto pessoas em estado de mania podem ter delírios de grandeza, acreditando serem capazes de tudo. Esses delírios têm origem primeiro no estado afetivo destas pessoas, e não no pensamento propriamente dito.

Além disso, o pensamento deliroide também pode ter origem em outras pessoas, ou seja, alguém tem um delírio e este é compartilhado. Esse fenômeno também é conhecido como loucura a dois (folie à deux). Nesses casos, existe uma pessoa originalmente portadora de algum transtorno psicótico que, ao interagir intimamente com outra pessoa influenciável, acaba gerando o mesmo delírio nessa segunda pessoa.

Ideias hipervaloradas

Ideias hipervaloradas são aquelas que, tendo grande importância afetiva para o indivíduo, predominam em sua mente, mesmo em momentos inoportunos. Neste sentido, são muito semelhantes aos pensamentos obsessivos, mas se diferem destes por serem aceitas pelo indivíduo (mais sobre isso abaixo).

Elas são diferentes dos delírios, também, pois o nível de convicção costuma ser menor. Ou seja, ainda que a pessoa aceite a ideia como verdadeira, a convicção ainda pode ser abalada por provas objetivas. Isso não quer dizer, no entanto, que essas ideias não podem progredir para um delírio verdadeiro.

Uma outra característica visível nas ideias hipervaloradas é o fato de que elas podem ser compreendidas a partir de experiências passadas, ou seja, pode existir um componente traumático por trás dessas ideias.

Alguns exemplos de ideias hipervaloradas são a sensação de estar acima do peso em transtornos alimentares como anorexia nervosa, a convicção de estar doente na hipocondria (ansiedade de doença), ter certeza de estar sendo traído em casos de ciúmes patológico não-delirante, entre outros.

Conclusões precipitadas

As conclusões precipitadas acontecem o tempo todo, e todos nós já passamos por isso. O fenômeno, chamado em inglês de jumping to conclusions, ocorre quando tiramos uma conclusão — frequentemente negativa ou desagradável — sem que haja informações o suficiente para compreender a situação.

É o caso de quando achamos uma pessoa rude por nos ultrapassar correndo sem pedir licença enquanto estamos caminhando, sem saber que, na realidade, ela precisava correr para não perder o ônibus que estava chegando, ou seja, seu comportamento não tinha qualquer relação com sua personalidade, mas assumimos isso sem nos questionar, motivo pelo qual esse tipo de pensamento indica uma alteração no juízo crítico.

Embora as conclusões precipitadas não sejam sinal de um transtorno mental por si só, estando presente com frequência em indivíduos saudáveis, elas podem ser muito prejudiciais para os relacionamentos interpessoais, uma vez que podem levar a brigas e discussões desnecessárias.

Para melhorar este quadro, é importante se questionar se você tem, de fato, informações o suficiente sobre o ocorrido para tirar alguma conclusão. Caso a resposta seja negativa, você pode até especular, mas não deve aceitar seu pensamento como uma verdade, uma vez que as chances de haver algum erro são grandes.

Delírio vs. pensamento obsessivo

Dois tipos de pensamentos que precisam ser diferenciados são os delírios e os pensamentos obsessivos. Isso porque, muitas vezes, essas alterações possuem conteúdos muito parecidos.

Frequentemente, os delírios ou pensamentos obsessivos de uma pessoa estão relacionados à contaminação por microrganismos. Como diferenciar?

A principal diferença é que o pensamento obsessivo não é aceito pelo juízo crítico da pessoa. Isso significa que, por mais que os pensamentos a respeito de contaminações continuem voltando o tempo todo, a pessoa sabe racionalmente que as chances de ela sofrer uma contaminação real são bem mais baixas do que seu medo a faz pensar.

Já no caso do delírio, a pessoa está convicta de que será contaminada. Ainda que a lógica diga exatamente o contrário, a pessoa não consegue aceitá-la como uma verdade. Ela não consegue contestar seu próprio pensamento, acreditando piamente nele.

E na religião?

O pensamento religioso pode se assimilar muito a alguns casos de alterações no juízo crítico do pensamento, mas nem por isso significa que a pessoa está em alguma situação preocupante. Ter uma fé pode alterar o pensamento e o indivíduo pode acreditar, por exemplo, que as coisas irão conspirar ao seu favor por alguma bênção (pensamento dereísta).

Como saber que não se trata de um transtorno? Bem, desde que essa pessoa seja capaz de perceber que esse pensamento parte da fé a não da realidade, não se pode dizer que o juízo crítico está prejudicado de fato. Além disso, o pensamento religioso e místico também tem um componente social, ou seja, sua convicção parte também de um grupo social que compartilha das mesmas crenças, não podendo, portanto, ser visto como um delírio, por exemplo.

Isso se torna mais complicado quando a pessoa acreditar ser algum tipo de messias. É muito mais provável que esse tipo de pensamento seja um delírio do que qualquer outra coisa, especialmente porque está muito ligado ao delírio de grandeza. Esse tipo de delírio também não costuma ter uma relação com uma religiosidade excessiva.

Para diferenciar um delírio místico ou religioso do pensamento religioso saudável, existem 3 pontos a serem observados:

  1. Se a experiência associada aos pensamentos do indivíduo têm características típicas de um delírio real;
  2. Presença de outros sintomas de transtornos psicóticos, como alucinações, alterações da afetividade, outras alterações de pensamento, etc.;
  3. O comportamento, o estilo de vida do indivíduo e as relações sociais são mais parecidas com a descrição presente em um transtorno psicótico do que com a experiência de uma pessoa envolvida em uma fé religiosa.

Caso esses 3 pontos sejam encontrados no caso, então é mais provável que se trate de um delírio do que de uma expressão saudável da fé e da religião.

São várias as alterações no juízo crítico do pensamento. Algumas são bastante preocupantes, outras são normais e muito frequentes no cotidiano, sem indicar qualquer problema mais grave.

No entanto, se você percebe que alguma pessoa conhecida está tendo ideias irreais que a prejudicam, ou você mesmo se identificou com algumas das situações narradas aqui, não se esqueça de entrar em contato com um psiquiatra ou psicólogo de sua confiança.

Referências

Dalgalarrondo, P. (2008). Psicopatologia e Semiologia dos Transtornos Mentais. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed.

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